76 - PASSADO E FUTURO



Do alto do meu telhado favorito imaginei viagens até ao futuro onde conheceria o homem que hoje sou. Depois de ter conseguido dar corpo a essa minha ideia, regressei de maneira oculta ao mesmo telhado. Tinha finalmente compreendido que não era assim tão complicado voltar a ser imortal. Arrisquei viajar pelo tempo, atrevi-me a observar o ser adulto em que me transformei, e os perfumes estonteantes da viagem não me deixaram indiferente.
Ao regressar ao tempo de outrora, Lavinhos pouco ou nada se transformou. Nas montanhas existem as mesmas árvores e as mesmas pedras, mas tudo o que ali estava tornou-se ainda mais real. O mundo de Lavinhos parece ser agora o único mundo verdadeiro — e é o único porque a vida de cada um dos seus dias pesa bem mais que um século.
A velha Leocádia transformou-se num reflexo da morte, quer falar mas as palavras que lhe saem pela boca são uma massa confusa de letras esfarrapadas e doridas. Ao seu lado vagueeiam as almas de Dulce, de Belarmina, de Conceição, de Teodora, e de todas as outras velhas, tão mudas e mortas como ela, tão fantasmagóricas, personagens trágicas da loucura do menino poeta.

- Ainda agora aqui chegou a primavera, meu irmão. Deste ao menos conta da sua chegada? Perpétuo, sabes bem que a minha alma não é capaz de sobreviver sem a tua, e sem esse teu ar grotesco de menino-poeta. É o teu génio que pinta assim as palavras e as dota de uma vida singular onde depressa deixam de ter medo de abraçar a morte.
Marília tem sempre razão. A vida que me absorvia já não me pertence, compreendo agora, na minha loucura, que passei a fazer parte do passado e do futuro — Jamais do presente, jamais do presente que me abstenho de visitar.

FIM

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