74 - RAÚL, VOLTA IMEDIATAMENTE PARA DENTRO DE MIM!




A aldeia não assistiu ao nascimento dos dois gémeos de Marília. A rapariga deu à luz sozinha na sua casa gruta, um casebre perdido no interior do bosque, era ainda noite escura. No chão havia apenas terra remexida e muitas pedras. Napoleão entrou no recinto muito devagar e deitou-se ao lado dela para a aquecer. Os filhos ursos eram negros como o pai e rapidamente aprenderam a saltitar à volta dos progenitores aos quais depois se juntaram numa espécie de ritual sagrado. Uma a uma, entranharam as pequenas garras na terra, depois farejaram-as, depois lamberam as patas e limparam os restos de lama aos seios já húmidos da mãe — castanhos da cor da terra — mataram a fome bebendo o leite morno de Marília — a mulher-urso estava muito sumida, as dores consumiam-na e os filhos sequiosos não a largavam, sempre a procurar por mais alimento. Enquanto comiam, escutavam-lhe o coração... e ela curvava-se cada vez mais sobre eles até quase os sufocar. Um dos gémeos reagiu por instinto e gravou as garras de alto abaixo no braço direito da mãe fraturando-lhe a clavícula. Marília mal conseguia dormir com as dores, e a muito custo encostou a cabeça à parede interior da gruta onde ficou desenhado o seu rosto. Imprimiu-o desta maneira, em baixo relevo — boca e olhos cerrados, uma pele bastante seca e gretada, e um monte de lágrimas de cristal assinaram todas as suas dores.
Napoleão passeava com os filhos pelos montes enquanto Marília recuperava naquela casa-gruta onde as coisas eram tão simples, tão estranhamente simples e eternas. Pariu ali a mulher-ursa, que também era raposa, e coruja, e águia e açor. Subitamente entranhou-se na gruta um cheiro intenso a morte. As palavras que ela se tinha esquecido de pronunciar logo após ter sido mãe, reproduziu-as mal vislumbrou a figura fantasmagórica de um esqueleto que ali entrou para a visitar. Disse-lhe que era apenas um morto como os demais, e que tinha muita vontade em a conhecer.
O visitante conseguiu entrar na gruta através de um dos muitos rios subterrâneos que seguiam por debaixo da câmara onde Marília deu à luz. Concentrou-se, mudou muitas vezes de direção, “vivia” em constante sobressalto pois as gotas geladas que caíam dos tetos não paravam de lhe construir estalagmites nas omoplatas. As gotas geladas pintaram-lhe os ossos de um verde musgo que brilhava no escuro. A figura demorou mais de doze séculos para ali chegar, avançou sempre sem dormir, e os anos sobrepuseram-lhe as estalagmites nas costas que se salientaram depois com a mesma cor humilde das ossadas. Ela era a única rainha que desejava conhecer, a mais nobre, a que sabia melhor do que ninguém que dia era aquele, que dia foi ontem, e qual dia será o de amanhã.
Marília tem agora os filhos para criar, e tem quase a vida inteira para o fazer. O visitante fantasmagórico disse-lhe que tinha de regressar a Lavinhos onde habitava a sua família. Tinha de regressar para matar de susto todas as velhas exaustas que por lá se tinham esquecido de espalhar ternura. Curvou-se respeitosamente perante Marília antes de se despedir, e partiu tão misteriosamente como ali tinha chegado.
A vida é uma coisa demasiado séria para fazermos de conta que estes encontros não acontecem. Ficamos assustados, perdemos a voz e o norte, e acabamos por guardar estes momentos bem fundo em nós.  Tarefa mais difícil é ter de suportar o peso das estalagmites que depois nos crescem nas costas, e acabamos a chorar baixinho para que não nos ouçam soluçar.
Ali fechado no meu quarto de menino-poeta, entre paredes de xisto, raspei, esfuraquei e esgravetei tudo o que fui capaz de raspar, esfuracar e esgravetar, até que enxerguei a minha querida irmã Marília no fundo da gruta em que estava transformada a parede do meu quarto.
Há séculos que a história se repete quase sempre da mesma maneira, e a mesma série de figuras e personagens estranhas voltam a repetir todos os gestos,... há séculos e séculos que é assim que tudo acontece.
Eu e a minha irmã Marília resolvemos de imediato sair de casa nessa noite, por motivos diferentes, e a nossa mãe Madalena aproveitou…
- Beija-me, Raúl! Acorda! Os miúdos voltaram a esconder-se… acorda, ama-me, não quero mais sentir-me assim sozinha e perdida, estou cansada, tão farta de tratar de ti, dos miúdos, dos animais, da terra, … estou cansada, sonhei de novo que estavas dentro de mim. É tão cansativo o peso deste céu sem fim. Não te atrevas a fazer de conta que não me escutas, homem, não te atrevas a ressonar, volta… volta imediatamente para dentro de mim!

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