75 - AS FLORES


A minha mão ainda tem forças para continuar a escrever esta história. Sei lá se a invento ou se dela faço parte, sei lá se a inventei como as outras que foram bem mais fáceis de contar. O meu paraíso era o sorriso do Toninho que me dizia, com imenso carinho, o quanto as apreciava. Parece que foi há séculos que partilhámos esse pão barrado com palavras que nos sabiam a mel. Contudo, ficou-me entranhada esta rara virtude. As letras são o meu pão, única companhia neste leito solitário em que hoje descanso e que nunca desejei.
Minha irmã Marília veio aqui chorar e eu mandei-a embora. Não a quero apagada nem sumida, não quero que chore por mim, não quero mais inventá-la, estou demasiado cansado. Da parede escura deste quarto de agora já não escuto gemidos. A casa desapareceu, só ficaram mesmo quatro paredes sem telhado, sem porta, e uma única janela por onde escorre água, não de chuva mas de lágrimas. Sinto uma mão, vejo que a minha mão tem de novo vontade de encontrar uma voz dentro da parede, é ela que me vai dizendo isso ao ouvido:
— Escuta! Escuta, meu senhor! Sou a tua escavadora desde pequena, a tua pobre escavadora. Se quiseres, basta que me ordenes, se quiseres voltarei a escarafunchar nesta parede branca, voltarei a remexer-lhe as entranhas como antigamente.
Vejo lá dentro outras figuras, mais ainda do que as que habitavam na parede de xisto do meu quarto de menino tão no início da minha vida! Essa noite está tão distante que já mal a descortino — mas a minha mão de menino poeta insiste em acender-me uma luzinha na mesma cabeça louca que há séculos me atormenta — e tudo à minha volta rodopia.
Diante de mim continua sozinha a minha irmã, mostra-me agora as mãos de unhas todas roídas, todas gastas pela dor...
- Já chegou a primavera, Perpétuo. Hoje estive quase para te trazer flores. Sei que não gostas dessas mariquices, mas era mais por mim, hoje seria mais por mim que estive quase para as trazer.
Por mais gritos que dê, o mundo vai continuar a produzir vulcões de múltiplas cores, o que carrego nas omoplatas em forma de estalagmite é um presságio para essa catástrofe que está para chegar.
- Devias ter-me trazido as flores, Marília. Estava mesmo há espera disso. Deixavas o ramo junto aos pés da cama, eu entreter-me-ia a vê-las ficar cada vez mais secas e mirradas, escutaria os seus ruídos meio surdos e cheiraria o insuportável odor a morte que sairía depois de dentro delas antes de apodrecerem. Porque não as trouxeste, maninha? Hoje comparo o teu esquecimento às palavras daquele escritor que sabia que era a morte que fazia falta à vida.
Formou-se uma tempestade no meu quarto.
Desencadeei catastróficas tempestades.
Marília regressou à sua forma primitiva de mulher-urso e uivou uma melodia noturna carregada de desespero.
- Cala-te, Perpétuo — És insuportável! És uma verdadeira besta. Queres viajar sozinho por essa cordilheira de cor, passear nos teus abismos etéreos onde deambulam só mortos a reclamar ainda mais mortos. És verdadeiramente insuportável, talvez o ser vivo mais universalmente insuportável e estúpido e perturbado de todas as gerações. Não sei porque ainda te aturo! Ninguém te respeita, e já quase ninguém sabe o teu nome. Estás só, cada vez mais só, e escreves apenas para inventar histórias cada vez mais incógnitas. Porque não conseguiste deixar que ninguém desse com a porta de entrada da tua vida?
Marília teve razão no que me disse, ela no fundo tinha sempre razão pois era ímpar a força e o dinamismo do seu caráter. A minha irmã era uma verdadeira pérola, e foi o meu subterrâneo, a gruta onde eu me abriguei sempre que escutava passos e vozes de quem não gostava.
- Vim aqui para te ver, para te dar um beijo, para estar contigo e dar-te coragem e força para viver. E tu não me queres! Preferes inventar palavras torcidas, uma espécie de rábula trágica em que decides matar as flores de um ramo que não te foi sequer oferecido. Atrás dessa tua ironia existem outras camadas que carregas no mais profundo de ti e que não queres deixar sair. Ficas feio e disforme, e nos teus olhos consegue-se quase vislumbrar a claridade assustadora das portas do inferno.
Marília falou-me de terra e de mortos, e a sua presença no quarto acabou por se desfazer em fumo, e o que era a realidade da sua existência física depressa se transformou em mais um sonho agitado. Ainda hoje a vejo e imagino como sempre a conheci.

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