73 - ANTES E DEPOIS
Chove lá fora.
No quarto do
escritor poeta rodeiam-no todos os mortos.
Toninho Faneca
foi o primeiro a falar, disse-lhe que se preparasse pois os cheiros a podre são
difíceis de suportar. As desgraças povoam todos os lugares e é sempre noite
escura. Os que por lá passeiam moem e remoem as mesmas conversas obstinadas que
dão cabo da paciência a qualquer um. O Toninho disse ainda que tinha saudades
das histórias do menino poeta, mesmo daquelas em que os finais não eram assim
tão felizes, e disse-lhe que seria até capaz de matar para voltar a saborear uma
simples côdea de pão.
O pai Raúl
falou a seguir, disse-lhe não se lembrar quantos anos tinha quando morreu. Deram
com ele já morto na cama, levaram-no embrulhado nos mesmos lençóis onde dormira
a última noite para depois o enfiarem na câmara frigorífica. Quatro paredes
muito apertadinhas e secas com um estranho odor a granito. Depois um tipo
estranho fardado de guarda nacional republicano tirou-o de lá e perguntou-lhe:
Ó Raúl, tu conheces-me? És mesmo tu, Raúl, não me conheces? Os olhos não se
abriram, mas Raúl viu bem quem ele era, e percebeu de imediato que a sua vida
tinha chegado ao fim. A cabeça encolheu, a pele ficou ressequida como a massa
de um pastel de nata, e depois ficou da mesma cor dos montes de Lavinhos.
Desabituado de
falar, Lucas pastor foi o terceiro a aparecer. Um silêncio medonho só comparado
aos gritos das pedras ecoou pela cabeça do menino poeta. Ele era o maior dos
pecadores, o seu poder demoníaco criou a Lavinhos de agora, a sua vida e a sua
morte estão ligadas para sempre àquela aldeia de terras frias, negras e
ingratas. Disse-lhe que só teve pena de não ter conseguido pôr as mãos em
Marília, e que as pernas da sua irmã eram feitas de rochas, e os braços eram os
penhascos, e os dedos as árvores, e o sorriso a poeira, e os bichos rastejantes
o cabelo, e o mato o lugar onde se queria enfiar, mas ela escapou-lhe sempre e
amava Napoleão, o urso de patas enormes como rochedos. Há muito que o pastor ambicionava
ter mãos como penhascos e corpo e pele como a dos ursos, sempre desejou ter a mesma
força do gigantesco Napoleão.
A terra comeu-os
e desgastou-os. A terra deformou a voz de Armando, o quarto a comparecer. De
revólver na mão não disse muita coisa, a terra cravou nele um olhar profundo
comparado ao de Cristo, um que conseguiu chegar à velhice, um Cristo
sobrevivente à crucificação. Armando chegou e disse-lhe: - Este corpo nunca foi
meu, esta alma nunca foi minha. Quando me matei, não foi a mim que matei, mas
sim a meu pai. Despedacei-lhe o lado direito do crânio por onde consegui até
descortinar o teto e uma das suas traves. Quem tombou em frente a Madalena fui
eu, mas o morto era outro, e a casa também era outra que estava ali.
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