72 - PAREDE DE XISTO





A filha fugiu-lhes de vez.
Madalena ficou semilouca, mas não existiam hospícios em Lavinhos. Quem a iria visitar? Quem, depois de passar a semi loucura, a iria buscar e trazer de regresso a casa? Raúl olhava para a mulher semilouca sabendo que o caso dela era verdadeiramente extraordinário.
Madalena viu sempre como sendo absolutamente naturais os constantes desaparecimentos da filha. Mais do que isso, havia nela uma quase insensibilidade e uma inexplicável serenidade perante a situação que Raúl preferia não entender. Marília nunca fazia exigências quando estava presente, Madalena mandava e Marília obedecia. As mulheres tinham sido construídas por Deus para trabalhar para os homens, era esse o quadro, sempre foi assim, e Marília satisfazia todas as impertinências dos pais sem pestanejar, mas ela já quase não os ouvia, creio mesmo que não os ouvia. Os gestos tinham-se tornados mecânicos, conduzidos por mãos sábias e calejadas que muito cedo se habituaram a varrer desgraças.
Passaram duas semanas sem que Marília regressasse, depois passaram três, e Raúl, que já não falava com a Madalena desde a morte de Armando, arrancou a coragem do peito para a confrontar com a realidade daquela história.
- Mulher, quando foi mesmo a última vez que tivemos uma conversa séria com a nossa filha? Tu não sabes o quanto tenho chorado por nós, não fazes ideia o que tenho chorado, mulher, que os raios todos do Céu caiam sobre mim se estiver mentindo,…
- Homem, tu já não sabes mais o que dizer! Deste ouvido às velhas e destruíste para sempre as nossas vidas, Raúl! Ouviste-as, a elas e às outras quase tão velhas como elas, e vens agora com esta conversa? Como tens coragem para vires aqui expressar a tua dor? Estou gasta, fiquei desgastada com todas as pedras que me atiraste à cara,… atiraste-me pedras sobre pedras sobre pedras. Tentei fazer-te entender que tinha conservado a minha ternura e amor por ti,... estava intacta e inteira, e tu não quiseste saber de nada do que eu te dizia… Assim se deformou esta nova alma em mim, e eu não sei como te explicar, como te dizer, que nada mais me importa. A nossa filha possuía a mesma ternura dos bichos e nós modificámos-lhe as vontades. Sai da minha frente, Raúl, sai da minha frente que eu já só penso em morrer. Marília também veio a este mundo sem se importar de falecer. Talvez a morte seja para nós a vida. Mas em Lavinhos é Marília quem brilha, é ela quem viaja pelos tempos e quem melhor se habituou a fazê-lo. Há milhares de anos que assim acontece, foi ela quem me contou. A nossa filha é faúlha de estrelas cadentes e sofre horrores quando tem de regressar a esta terra mesquinha. Ao contrário de nós, é obstinada mas humilde, e sonha como nenhuma outra mulher, através do infinito. Não a ouvias gritar, não a escutavas, como eu, durante a noite, quando gritava do meio da floresta?
Por vezes parece que tudo isto não passou de um sonho mau que nunca se apagou da cabeça do menino poeta. O rapazinho reapareceu através das paredes escurecidas de xisto na obscuridade espessa do seu quarto de criança. Ali se escondeu, ali foi descobrir a irmã Marília em toda a sua grandeza, ali a foi buscar e conduzir até ele por uma mão pequena de rapazinho assustado.
- Vem comigo, mana, vem comigo, por favor. Estou com medo. Um mocho gigantesco de olhos vidrados olhou para mim e disse-me que também eu terei de morrer um dia. O cobertor pica-me, as velhas da aldeia picam-me ao beijarem-me a cara, têm os dedos e as mãos muito enrugadas,… as velhas que encontrei há pouco neste nosso sonho já morreram todas pelo caminho. Tenho medo, Marília, e o meu medo está cada vez maior.
 

Comentários