71 - AS GARRAS DA RAPOSA
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Acabou a ternura
em Lavinhos…, talvez nunca tenha verdadeiramente ali existido. Os seus habitantes
estão imersos numa ilusão que os subjuga e aturde. Há séculos que a morte se entretém a fustigar a aldeia, agarrou-se a ela
como um bivalve que sabe muito bem onde quer pernoitar.
A luz da lua vagueia
pela floresta adormecida, avança pelas suas entranhas à procura dos amantes que
regressaram ao ponto de partida.
Marília não esperava
ter de enfrentar a morte naquele dia em que a manhã nasceu alucinada. Era ainda
muito cedo quando Lucas pastor deu início à louca perseguição. Desejou imenso conseguir
agarrá-la para não mais a largar. Ela correu, esgueirou-se pelo denso arvoredo enquanto
gritava que nada lhe metia medo, que nada nem ninguém a conseguiria alcançar. Bradou,
ainda, que se ele alguma vez se atrevesse a tocar-lhe, ela de imediato lhe arrancaria
os olhos. Foi mesmo só isso que lhe interessou comunicar.
Marília confiava
nas suas garras não retráteis de raposa, e parecia que tinha chegado a hora em que
ela teria mesmo de cravá-las nos olhos insensatos de Lucas pastor. O bafo do homem
tresandava a morte a léguas de distância. Ela parou, por breves instantes, depois
subiu para cima de um grande carvalho e ali ficou quieta, à espera, numa calma quasi
trágica, ensaiando um entorpecimento misterioso — invisível como a névoa matinal,
a mulher-raposa depressa percebeu as intenções do pastor e preparou-se para lhe
proporcionar um espanto sem igual.
Lucas sentiu-se
subitamente envolvido pelo odor fétido da morte, a as suas mãos começaram a cheirar
mal momentos antes dele a ter alcançado.
- Morte, trouxeste-me
quase até onde eu queria! Vagueei pela floresta ainda adormecida e avancei até este
lugar. Marília! Escuta bem o que te digo, ó vaca! Tu não me metes medo, vagabunda!
Anda cá! Vem cá, anda… vem cá arrancar-me os olhos, ó puta! Vem cá, se fores capaz,…
talvez sejam os teus olhos os primeiros a desaparecer. Será esta mão que os irá
arrancar de ti, e é apenas só isso que me interessa.
Lucas confiava plenamente
no poder secreto da Morte.
Marília sabia que
seria fácil conseguir resolver a situação num outro dia qualquer, mas aquele dia
tinha amanhecido negro e mais trágico que os anteriores — alguma coisa lhe disse
para evitar o confronto, alguma coisa lhe disse para não o atacar. Se o fizesse,
talvez nunca mais viesse a acordar deste sonho inventado pelo irmão poeta numa noite
de terror.
Ainda bem que Marília
não o fez. Foi por isso que o menino poeta sobreviveu e acordou naquela estranha
madrugada com a garganta seca e com um intenso e estranho sabor a vida inteira entranhado
nas papilas.
*
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