70 - FIM DO MUNDO





Perpétuo, o menino-poeta, ensaiou um primeiro esboço naquela parede que parecia ter sido erguida à medida da sua mão. Preparou-se para levar a tarefa até ao fim para afastar do peito o seu primeiro grande medo de criança — gestos que vem repetindo desde há séculos —  são já aos milhares as paredes que desfez em pó.
As árvores que ali nasceram muito cedo deram sombras e todos os Lavinhenses as aproveitaram. Nos dias de chuva e em dias nublados, o vento soprava as ramagens e agitava os troncos de que eram construídas. O outono chegava e mudava-lhes a cor, o inverno vinha depois para as despir deixando-as magras e tristonhas. As árvores ressequidas chegavam miraculosamente intactas à primavera e ficavam felizes com a chegada do verão. A voz clamorosa das montanhas fazia uma pausa nas tempestades, sufocava-lhes os gritos e iluminava-lhes a escuridão.
Um arrepio de frio chegou vindo de um outro tempo, de um outro mundo. Perpétuo teve saudades, sentiu saudades de Marília e daquele cantinho de telhado para onde subia e onde vivia mais devagarinho. Aquecia-se lá em cima como em nunhum outro lugar. O poeta sabe que nunca mais voltará a aquecer-se por ali, sabe que lhe restam poucas horas de vida e só já lhe apetece gritar!
- Pudesse eu gritar, e gritaria! Agora sonho a sorrir, sonho que durmo e sonho uma história louca que mal compreendo, e adormeço de novo a rodopiar na mesma queda imensa. Lavinhos talvez seja a única aldeia do mundo que desconheço, mas é lá que tenho os nervos ligados à caliça da parede do meu quarto e estou convencido que ele existe, e que tudo isto existe — ou apenas isto existe e nada mais
O tempo não existe, nenhum tempo é real, erramos no universo ao qual pertencemos desde sempre, e todos somos o seu Deus, os que ainda vivem e todos os que faleceram. Os mortos gritam dentro de nós, somos pedaços de todos esses mortos, muito menos completos do que foram, menos sensíveis, menos imortais.
O Toninho Faneca e eu naufragámos neste sonho... chegámos depressa onde não queríamos. Chegámos depressa ao mesmo ponto de partida onde víamos o grande mar oceano a brilhar por debaixo de uma lua feita de prata que caminhava connosco rumo ao desconhecido. A ela prendemos os olhos e acalmámos os receios, e depois naufragámos…
Nunca acordámos verdadeiramente deste sonho esplêndido.
 


Comentários