69 - PARTO



Nas mãos de Perpétuo cresceram garras, nas garras a terra entranhou-se, e as rugas cresceram nos dois lados do seu coração.
Do teto da grande nave afunilada cresceram grandes raízes. A nave invisível resolveu descer do céu à terra onde moram a vida e a morte. As árvores que delam nascem também ali entraram para fazer do objeto voador uma gigantesca construção viva. A nave-mãe ficou grávida num repente, e antes era bem mais pobre do que agora,… ainda bem que regressou ao mesmo local que a viu nascer.
O objeto afunilado deu à luz duas árvores idênticas num parto sem dor. As duas àrvores gémeas destacaram-se da mãe durante a noite, e viram-na regressar de novo aos céus, quase tão invisível como antes, mas muito mais suja e entranhada de terra. Partiu num repente por entre nuvens escuras depois de ali ter parido dois robustos castanheiros.
— Mãe — perguntou a árvore mais pequena — mãe, porque nos plantaste aqui?
Há séculos que a mesma nave-mãe vem aqui parir os seus filhos. O objeto afunilado repete sempre os mesmos gestos, da mesma forma atabalhoada e misteriosa. Há séculos que a nave-mãe paira por cima de Lavinhos antes de revolver a terra onde irá parir os seus filhos-árvore. Há séculos que depois carrega consigo no ventre Marília, Perpétuo e Napoleão, recolhe-os sempre à mesma hora do mesmo dia do mesmo mês do mesmo ano, e depois volta a ensinar-lhes tudo de novo. Alimenta-os com o mesmo pão e a mesma água e depois regressa, passados muitos anos, para os largar na mesma relva húmida onde os recolheu.
Há séculos que Marília aqui chora as mesmas lágrimas e as mulheres de Lavinhos. Num ritual feminino, trazem até aqui os pequenos filhos ao colo e falam-lhes, ensinam-lhes o que são as dores da vida com os olhos a renovar todas as dores e todas as lágrimas. Os montes escutam-as, o rio estanca a corrente de água que reproduz a vida e as mulheres choram debruçadas sobre os seus filhos. Mal descortinam a luz tímida e humilde da madrugada, mal distinguem as vidas das crianças frágeis — Há séculos que a mesma nave-mãe vem aqui parir os seus filhos e observa as outras mulheres-mãe. Há séculos que é assim, diante dela estão todas juntas e sozinhas a mostrar-lhe as suas mãos enormes construídas de ternura.

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