68 - NOITES NEGRAS



Preciso de saber, necessito de saber se o fim se aproxima, se me afeiçoarei ao meu fim, se o aceitarei com a mesma resignação com que todas as vidas encontram a morte. Preciso de saber, tenho mesmo de saber para depois voltar a encarar a solidão que se entranhou em mim como se fosse construída com ternura.
A Marília fugiu para sempre.
Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, a sua vida extraordinária se tornaria ainda mais natural. A minha irmã sempre foi a mais rica criatura do universo, filha de Madalena e de Raúl, que nunca lhe limpou a merda ou o mijo, que nunca a alimentou, que nunca lhe catou lendêas ou piolhos, que nunca experimentou lavá-la ou adormecê-la ou acalmar-lhe os receios.
Naqueles seus olhos de raposa havia igualmente um não sei que de olhar felino pleno de serenidade.
Vai fazer-me tanta falta…, mas eu sei que ela tinha de obedecer ao coração e aos instintos, eu sei que ela tinha de satisfazer as suas vontades, e todos os seus gestos a conduziram para uma liberdade que lhe embalou a raiz da vida. O dia em que Marília encontrou Napoleão foi das poucas vezes que a vi chorar, e foi das poucas vezes em que ela ficou parada sem saber bem o que fazer. Aquele dia foi quase o princípio do fim do seu mundo, dele conservou a ternura, expressão máxima de um grande amor também ela se sentia só no mundo, mas agora já não se importava de morrer. Talvez a morte fosse para ela a vida, talvez o amor fosse a luz que tentava encontrar, talvez por isso tenha viajado, sem parar, muitos milhares de anos por entre estrelas perdidas na imensidão.
Custa sempre regressar à terra.
Marília teimava em correr mais do que eu, e exclamava: — O menino está vivo? O menino Perpétuo é um puto medroso que por vezes parece ter medo de me apanhar — e depois reaparecia mesmo atrás de mim, a rapariga-mágica, em toda a sua grandeza e esplendor. É desta mulher-irmã que eu me recordo, e quero que ela possa praticar comigo este jogo para sempre…
É ela quem conduz o tempo e o espaço-tempo com uma delicadeza e candura sem igual. Imensa é a sua ternura, imensa e instintiva e tão humilde.
Parei.
Estou parado no caminho com os olhos aguados. Cada vez é maior o meu pranto. Preciso de saber, necessito de saber se o fim se aproxima, se me afeiçoarei ao meu fim, se o aceitarei com a mesma resignação com que todas as vidas encontram a morte.
Será este o princípio ou o fim do meu mundo?
O nosso pai não gostava de nos pegar ao colo. Tinha as mãos muito ásperas, tinha daquelas mãos gigantes e disformes que não foram construídas para amparar crianças. Por vezes surge-me o rosto de Raúl no meio da mesma escuridão opaca onde Marília ressurgia, e os dois rodeiam-me como se estivessem mortos, e depois ficamos os três a esburacar a parede branca de estuque até se verem as entranhas escuras feitas de xisto, ali feitos lavradores de uma mesma terra dolorosa.
Este sonhos alimentam cada vez mais a minha loucura, povoam-me as noites e os dias, desabam ininterruptos desde que Marília fugiu de mim para exprimir somente amor com aquela majestosa figura negra do seu amante urso.
Sumiu-se.
O nosso pai ainda não tinha sessenta anos quando morreu. Madalena desatou aos gritos debruçada sobre ele, e os olhos mirraram e a pele secou e os cabelos todos ficaram brancos de repente. O tempo revestiu Madalena da mesma cor dos ossos e do xisto, e ela habituou-se ao silêncio.
A terra era negra.
A terra era um monte de detritos, era pedaços de mortos, era Raúl ali estático como as pedras que a terra e o tempo aprenderam a desgastar.
Albano morreu de outra forma. Matou-se com um tiro de revólver. Momentos antes tinha olhado profundamente para a alma de Madalena, que comparou à de Cristo. Ela tinha ido até ele para o tentar salvar das desilusões.
 As noites negras chegaram, as noites negras acabam sempre por chegar, dizem que os corpos pedem por terra, … e é por isso que preciso de saber, necessito mesmo de saber se o meu fim se aproxima, se me afeiçoarei a ele e o aceitarei com a mesma resignação com que todas as vidas encontram a morte.

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