67 - MINHA IRMÃ URSA



Nas minhas mãos cresceram rugas do tempo que as transfiguraram. Estão agora secas como os meus olhos, secas, cansadas e quase trágicas, esculpidas em mármore rosa com dedos vigorosos. Mãos habituadas a enganar o medo e o silêncio com palavras desenhadas em folhas de várias cores, mãos habituadas a criar mentiras, a inventar famílias inteiras — inventei a minha própria família, a minha irmã Marília, o meu pai, a minha mãe e todos os espaços de Lavinhos. Misturei-me com eles, menti tanto que hoje acredito ser Lavinhense para sempre    passei a fazer parte das suas paisagens não verdadeiras.
Marília passa por mim a correr, muito assustada, com os sonhos desfeitos. Está feroz, quase tão feroz como Napoleão, também aqui presente, a correr atrás dela por uma floresta de árvores que não se vêem, mas que também estão aqui... Os amantes selvagens vagueiam pelo bosque como dois seres cegos, gritam e urram, remexem um no outro com prazer frenético e correm românticos, arfam, não se cansam, ou fingem não se cansar. Amam-se de um jeito nunca antes cantado em poemas de amor. E a noite desceu das montanhas com os urros dos amantes a entranharem-se na floresta escurecida, e tudo neles é sedução e lascívia de bichos. Os recantos outrora ignorados dos seus corpos de ursos deixaram de o ser, agora mordem-se e executam, com mestria de bicho, arrebatados movimentos sexuais. Os dois animais unem-se de novo enquanto o universo se expande, suspira, e cria novas estrelas e galáxias — o universo também sonha novas formas de luxúria — e os dois ursos amantes amam-se repetidas vezes nas avenidas escuras da floresta.
O céu permanece tempestuoso e os clarões iluminam Marília e Napoleão antes que a noite mais escura os mimetize de vez — e logo os braços monstruosos dos amantes se voltam a entrelaçar num abraço monumental. Ali não se fala de ter medo da morte, ali agarram-se e mordem-se nas bocas vezes sem conta, ficam pintadas com o sangue do seu amor. Os jovens amantes urram de prazer — só pararam uma vez naquela madrugada. Sôfregos de paixão, resolveram embrenhar-se no escuro exigindo que o universo os esquecesse nesse mesmo lugar escondido onde os encontrou.

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