66 - O MENINO QUE OUTRORA FUI
Que prazer me
daria recomeçar uma nova existência, poder regressar ao passado, continuar a
rasgar valas e a abrir estradas nas paredes do meu quarto de menino. Uma
orquestra tocaria o concerto número três de Bradenburgo de Johann Sebastian Bach
com uma fúria inimaginável, e eu ali a alimentar-me dela para esculpir tempestades
no xisto, aos pares, elas de branco vestidas no negro das lajes velhas que mais
uma vez se descobriam. Que prazer me daria ficar de novo com os dedos
ensanguentados de tanto raspar, furioso, a vida daquela caliça.
Rapidamente
envelheci e me cobri de experiência.
Jovem por fora,
idoso por dentro — regressaria mais de cem vezes a esse instante inicial da
minha existência. Mandaria parar o medo, parar a rotação do mundo. E os trovões
ecoariam, os relâmpagos iluminariam novamente o meu pequeno quarto de Lavinhos,
aldeia imaginária que ajudei a construir. Tenho vindo a contar a sua história,
que é a minha, construída quase de um dia para o outro, de uma vida para outra,
neles e nela avançámos iguais mas tão diferentes ao que já fomos.
E o concerto de
Bach BWV 1056 seria tocado pela mesma orquestra, e a minha escultura cresceria,
redobraria de tamanho e no chão adivinhar-se-iam vulcões brancos que não
pertenceriam à realidade. A minha noite seria mais uma vez essa, eu a lutar
contra os receios e o temporal a crescer lá fora, a crescer e a zombar de mim
naqueles relâmpagos luminosos de braços quentes tão grandes como guindastes.
Que prazer me
daria ter de apanhar de novo o pó pela manhã, ter de recolhê-lo para assim dar
cumprimento à ordem mais misteriosa do meu mundo. A tempestade pintaria o céu com
espessas nuvens negras que se debruçariam sobre mim. Que prazer me daria essa minha
vida de luxo branco, negro e doirado, e a intempérie elétrica deformar-me-ia para
sempre a fisionomia magra e quase esquelética desse menino que outrora fui.
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