65 - REGRESSO A CASA
Passaram
séculos de muita saudade, séculos inteiros em que a viagem se escreveu inteira
no ecrã iluminado do grande salão da nave afunilada. Perpétuo, Marília e
Napoleão pouco envelheceram entre as paredes envernizadas e quase assépticas da
gigantesca máquina voadora. O tempo passou, os seus corpos estão iguais mas mais
cansados, exigem terra e estão quase em alvoroço. A hibernação terminou, antes
estavam quase mortos e agora que acordaram, já só sonham em regressar.
Viajar no
tempo, para trás e para a frente, pela vida fora, pela vida inteira, ensaiar novos
gestos, novos renascimentos — e tudo se dissolveu aparentemente num imenso
turbilhão magnético — soltaram-se raios de energia que atravessaram as várias
salas e paredes da nave e atravessaram os corpos dos navegantes
dissolvendo-lhes os átomos de que era feita a sua vida.
Tornaram-se
energia — sombra de Perpétuo, memórias de Perpétuo, sombras de Marília,
memórias de Marília, sombras de Napoleão, memórias de Napoleão — reapareceram
quase no mesmo lugar, iguais ao que eram à hora da partida, a reclamar as suas vidas
perto de Lavinhos.
Perpétuo
acordou no chão húmido sobressaltado por um intenso cheiro a terra queimada.
Uma fera imensa com garras afiadas olhava para ele, meio entorpecida. Cheiravam
a vida com estranheza, a fera e o poeta. O animal tinha-se esquecido completamente
de como era ser urso e lançou um grito longo e profundo que há muito trazia
guardado nos pulmões. Foram séculos de imobilidade, os corpos de ambos tentaram
desentorpecer os músculos apesar das dores intensas e os primeiros movimentos
exigiram muita atenção. Estavam esquecidos e de alguns deles quase não restava
memória.
Por cima das
montanhas de Lavinhos permaneceu a levitar a nave afunilada de cúpulas
envidraçadas.
Perpétuo pôs-se
de pé.
Napoleão
afastou-se do poeta, correu pelo prado e entrou no bosque onde se tornou
invisível. Tentou encontrar o cheiro de Marília que desaparecera. Nas noites
anteriores o menino não tinha sido capaz de acompanhar o ritmo da irmã, mas
daquela vez Marília abrandou o passo e deixou que o irmão a alcançasse.
Distinguiu-lhe um medo novo, bem diferente dos anteriores, um medo tão intenso
que o impedia de raciocinar.
Napoleão urrou
ao longe, gritou enquanto corria com a boca muito seca. Era outra vez um jovem
urso com a boca a saber a pó.
A nave
afunilada tornou-se brilhante no céu, dir-se-ia que estava igual a uma noite de
tempestade, com as vísceras metálicas transformadas em relâmpagos e energia! As
luzes intensas do objeto incidiram diretamente sobre a cabeça do poeta que logo
sentiu uma solidão sem igual. Alguma coisa nele tinha morrido, alguém de quem
gostava tinha falecido. Nem todas as mortes são assim anunciadas através destas
tempestades elétricas que nos espancam e envolvem numa experiência atroz. Nem
todas as viagens pelo espaço-tempo acabam assim com este intenso perfume a terra
queimada, a morte e a solidão. Desta vez Perpétuo trouxe consigo memórias de um
futuro desconhecido e no qual preferia não ter de acreditar…
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