64 - VIDA É A LOUCURA DO POETA
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Não me preparei
para esta viagem.
Não estava
preparado para viajar, nunca estamos verdadeiramente preparados para uma viagem
como esta.
A nave-mãe
afunilada tem a mesma cor das nuvens que atravessa, e depressa se torna
invisível. Estas ainda são as mesmas nuvens que a viram chegar. O ruído dos
motores é quase impercetível e suspende-se no mesmo instante que a velocidade
do aparelho se converte em algo impossível de descrever. Tudo estremece, tudo
se ilumina, tenho água morna a entrar para esta espécie de casulo envidraçado
onde me encontro. Estou nu, preso em posição horizontal, respiro cada vez com
maior dificuldade, com muito cuidado tento respirar o pouco ar que ainda existe
dentro da campânula que abana e tenho medo, e sinto um medo que me paralisa
todos os músculos ao mesmo tempo, e o coração deixa de bater, e já não consigo
respirar, grito o último pensamento-escrita que me resta, acabou-se de vez esta
minha vida.
- MARÍLIA!
MARÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍLIA!!!! SALVA-ME. POR FAVOR!
A vida
apagou-se de mim, é agora uma gota-murmúrio desta água tépida onde estou
mergulhado. Curiosamente ainda sinto as mãos, como é possível sentir as mãos se
estou morto. A água-vida escorre em gotas-murmúrio e nelas estão arquivadas as
minhas várias consciências.
Dura um sopro,
um pequeno instante, cada vida minha, segundo-universal tão diferente dos que
conhecemos. Mergulharam-me aqui, estou atónito neste ainda sonho meu — sonho
sem importância nenhuma — sonho contigo, minha querida irmã, és tudo o que me
resta,… só tu me podes salvar.
De cada vez que
penso em gritar, o silêncio intensifica-se.
Os uivos que
imagino lançar soam-me cada vez mais desesperados.
Um mocho de
olhos alienígenas olha para mim, sei que o faz de propósito para me perturbar,
chegou agora mesmo do passado, mas eu ainda não o esqueci. É a tua voz serena
que me acalma nestes momentos, Marília, só tu me dizes o que devo fazer —
Espera por mim, mana, não voltes a esconder-te no interior da parede de xisto,
não fujas para a floresta, não agora que me disseram que também terei de
morrer.
Existem teorias
que nos preparam para a morte, são palavras guardadas em livros velhos que
aprenderam a gritar. Esqueci-me onde as guardei, e quase me esqueci de ti — até
que voltei a colocar o ouvido à escuta na parede do quarto que de imediato
esfarelei. Suspendi a respiração à tua espreita. Estive sozinho desde que nasci,
deixaste-me crescer sozinho, estou a meio da minha vida e sozinho foi a palavra
primeira que me ensinaste a pronunciar.
- Agora estão
todos mortos, menos nós!
Tive um baque,
entrei em desespero, mas já não consigo chorar mais.
A minha mão
trémula continua entretida a esburacar a mesma parede de sempre como se ali
estivessem escondidas as nossas últimas palavras.
As nossas histórias
foram somente outra loucura de Perpétuo, esse menino-poeta que para sempre te
chamará “minha irmã”!
Os olhos do mocho moveram-se através da vidraça
da janela muito fria do meu passado — o bicho janota sorriu antes de desaparecer
no escuro.
O pequeno quarto
serviu de cenário principal para o início da ação.
As velhas da aldeia
já se ergueram do chão.
Lucas pastor matou
quinze mulheres jovens de Lavinhos.
Napoleão impediu-o
de oferecer a Marília o mesmo destino trágico das outras mulheres-flor.
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