62 - O REBANHO DESAPARECEU




Tento encontrar explicações, mas soam–me cada vez mais confusas com leis e regras e hábitos complexos que servem apenas para encobrir as várias realidades de que não me consigo libertar. Os meus livros derreteram-se em histórias que deixei de conhecer — e no fundo de mim as descobri, prisioneiras de uma memória onde apenas bichos existiam. Confronto-me com essa necessidade de encontrar a verdade das coisas — dessas coisas tão ridículas, grotescas e mentirosas — e eis-me agora aqui também ridículo, tão absolutamente ridículo e infame, um explorador de desertos deformados que me esmagam e oprimem.
Desço as escadas íngremes de mais um sonho. Uma estranha visão do universo encontra-se espelhada no painel gigantesco de uma estranha nave afunilada. O ecrã luminoso está manchado com palavras monstruosas e os milénios a passar por elas, a passar por mim… e eis que ali se começam  a projetar imagens dos habitantes de Lavinhos, completamente nus, com as doenças espelhadas nos corpos uns dos outros, e no fundo dos seus estômagos minúsculas câmaras transmitem imagens coloridas dos ácidos que vão desfazendo os restos do meu sonho. Ali está a velha Leocádia — envelheceu mais ridícula do que as outras — a ressumar todas as dores da aldeia desde o esófago aos intestinos, até os movimentos peristálticos a reduzirem a um absurdo trapo humano.
Desde a longínqua data em que Marília se deixou apanhar, as minhas noites foram passadas a carpir as insónias ao relento, e os sonhos ficaram cada vez mais loucos e ridículos. Senti-me invadido por milhares de histórias embrionárias onde nenhuma era verdadeiramente minha, algumas começaram a transformar-se numa realidade grotesca, formaram as montanhas e a grande cordilheira de Lavinhos onde só tragédias aconteciam. Afundei-me nas águas turvas desses dramas, misturei-me, quase em convulsão, para depois emergir aos gritos com um líquido viscoso e esverdeado a escorrer-me pela boca.
O meu corpo confessou-se subitamente frágil e tão grotesco como o de Leocádia às portas da morte.
Lavinhos parou de gritar.
Restos de xailes negros estavam espalhados pelas ruelas e becos da aldeia.
Lucas pastor desceu do alto da serra carregando às costas toda a riqueza do firmamento. As estrelas do céu brilhavam avermelhadas nos seus dedos animalescos. O cortejo de mulheres velhas ajoelhou-se a seus pés onde deixaram escorrer as dores viscosas. Pararam a procissão, incapazes de compreender a razão para um ato daqueles. Ali se prostraram, desesperadas, em sufoco e sofrimento, vidas penadas às mãos daquele deus-demónio com força suprema, incapazes de lutar, incapazes de compreender a razão tenebrosa que esteve na origem dos crimes abomináveis de Lucas pastor.
- Subi à montanha, fiz de tudo para tentar subir mais alto, para tentar alcançar os melhores pastos, subi mais do que de todas as outras vezes. Levei o rebanho, alimentei os animais esfomeados que apenas reclamavam, e foi quando um frio singular se fez sentir, e um nevoeiro muito denso apareceu para me tapar o vislumbre das cabras, das ovelhas e até dos cães. Fui atingido por um relâmpago, quebrou-me e tombei ao comprido,… ó prima Adriana, ó prima Celeste, sei lá quem eu era depois de ter sido atingido pela coisa quente feita de luz.

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