61 - CHEGÁMOS
Outra camada de
sonho é projetada no ecrã da nave afunilada. Ainda não passaram mil anos desde
a partida de Lavinhos. As imagens são feitas de quase nada, ali só existe um
deserto vasto de areia, um panorama inexplorado, um oceano de areia infinita e
sem limites. Ali, diante deles, exatamente mil anos depois do dia em que o
menino poeta resolveu perseguir a irmã, só existe um deserto infinito de areias
vermelhas.
Perpétuo não
conseguiu aniquilar o impulso e perseguiu-a, praticou o crime e despertou o
poder dos mochos alienígenas outrora adormecidos. Desconhecia a profundidade da
gruta onde Marília se escondera e não sabia em que parte daquele mundo
subterrâneo a iria encontrar.
- Só agora
chegaste, irmãozinho? És tão inocente! Esse conflito que agora te perturba a
mente e se desdobra diante de ti como uma verdade inesperada é a causa das tuas
noites de desespero. Imobiliza-te, torna-te um ser quase inútil, faças tu os
esforços que fizeres. Tens de te atrever a dar um passo, tens de te atrever a dar
um outro passo para separar de ti essa dor grotesca.
A explicação de
Marília pareceu-lhe muito confusa, era mais uma das suas estranhas teorias — e
com os olhos abertos de espanto, um ar quase ridículo, desatou aos murros à
parede esburacada até deformar todos os dedos. Andou a ensaiar socos inúteis
com uma energia que nunca acabava, as nódoas vermelhas salpicaram-no todo e
entranharam-se no pijama e nos lençóis, e marcaram aquela noite com esplendor.
O menino poeta socava as paredes de xisto cada vez com maior sofreguidão.
Diante de si compareceu a verdade nua, quase obscena, e disse-lhe o que ainda
era cedo demais para compreender. O pesadelo absurdo podia ter esperado mais
alguns anos ao invés de lhe ter destruido a puerilidade.
O drama de
Perpétuo ajudou-o a formar montanhas ainda maiores e mais trágicas que as de
Lavinhos. A tudo isto o menino acrescentou ainda mais socos e muita dor, e dele
escorreu o líquido vermelho que penetrou no negrume xistoso das lajes
escondidas que logo brilharam.
Lavinhos
acordou dourada como o céu. A grande nave afunilada surgiu do nada e
escondeu-se por entre as nuvens ao amanhecer. Era do tamanho da sombra imensa
que lhes esculpiu uma estranha forma afunilada.
A luminosidade
daquele amanhecer teve um não sei quê de divino.
Perpétuo
resolveu aplacar a dor, parou de oferecer pancada às paredes do quarto
salpicadas de sangue. Nelas estavam pintadas o desespero e a angústia.
A nave
afunilada surgiu nos céus de Lavinhos no mesmo minuto do sonho de Perpétuo. Um
trovão assinalou a sua chegada, curvou-se o céu nesse lugar e vários relâmpagos
dourados riscaram o firmamento que perdeu por instantes a linha do horizonte.
Agora é que a
vida do menino poeta estava verdadeiramente a começar.
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