60 - SENHOR, TENDE PIEDADE DE NÓS
- Fujo de mim,
Marília, sei que não existes! Sou resistente e teimoso, e é só por isso que a
doença ainda não me derrotou.
Levanto-me todos
os dias mais desgraçado do que ontem e aquilo que vejo ao espelho é a mais
negra imagem de mim, contudo há uma força que me impele a avançar, que me
rodeia e eu sinto-a em quase todas as ocasiões. Por vezes finjo que não estou sozinho,
imagino que há dias em que a minha irmã me visita com as crianças e eu ouço-lhes
os gritos e as brincadeiras até me cansar. Tenho medo que me faltem!
- Só tu,
Marília, me entendes, pois vives na mesma história que eu. Vagueámos e
crescemos à toa neste mundo imenso e inexplicável. Agora tenho dentro de mim a
maleita feroz que me ataca a medula. Procuro esquecer-me dela, procuro
afastá-la de mim, não pensar na morte, deixar de lado os meus impulsos mais irresponsáveis e continuar a lutar. Finjo que a doença é apenas ilusão. Cada vez mais sei
que estou nas tuas mãos…
Estou nas mãos
de uma irmã inexistente e que me adora! Também eu a amo e a adoro.
- Marília, se eu
me conseguir libertar desta maleita maldita prometo regressar ao lugar onde
fomos criados. Tento não dar grande importância ao meu problema, talvez até
fosse melhor para ambos Se me deixasses de visitar. Sentes o mesmo mal que eu
sinto, e eu estou a passar-te a minha aflição.
Marília
pergunta-me com o olhar se consigo ter piedade de mim.
- Não, não
tenho nenhuma piedade de mim, sinto que não mereço. E agora pergunto-te se a
minha vida falsa te serviu para alguma coisa. Pergunto-te, mas tens mesmo de
responder, e não me sirvas as mesmas mentiras com que gostas de te exibir.
Vieste aqui para cumprir o teu dever de irmã, e eu logo te pus à vontade, sempre
te disse que não eras obrigada a cumprir nenhum dever…
Marília nunca
teve vontade de me fazer mal, nunca se atreveu a fazê-lo, eu fui todo o mal que
lhe aconteceu, e agora mergulhamos os dois nesta estranha forma de beatitude para cumprir um destino comum.
Todos gritam em
Lavinhos, está ali a vila toda a gritar palavras fúteis. O padre Armando
resolveu acabar com a vida inútil, resolveu subir a colina para beijar a morte
onde nos encontraremos em breve, uns aos outros, todos iguais e estúpidos e
cegos e desorientados, … ali do outro lado da vida onde o absurdo se torna
muito mais lógico. Eis o drama de Lavinhos, que vê a cólera ser desfeita perante
a ausência quase patética de ilusões. As velhas foram derrotadas perante a
singela ocorrência, os insultos que lançaram aos céus desmoronaram-se de
maneira ridícula assumindo o aspeto de uma pintura estranha onde as figuras se
transformam em simples esboços.
Lavinhos chora
diante da figura do padre que ali se estende, carne desfeita em sangue, carne limpa
e polida tombada numa mancha imensa de um rubro atroz. A harmonia do corpo
desnudado de Albano provocou o choque naquele
pequeno mundo criado pelo menino poeta. Madalena existiu ali primeiro do
que todos os outros, e era ainda só um sonho quando acordou de repente e se viu
envolvida no horror daquele disparo que estonteou o mundo. Fechou os olhos,
instintivamente, e depressa viu o corpo do padre tombar inerte no meio do chão.
Se ela tivesse
tido coragem, se ela o tivesse escutado de cada vez que se confessou, se
pudesse ter ouvido os gritos que Albano abafou antes de se ter soltado de vez
deste mundo, se o tivesse abordado e dele lambido o desespero, se tivesse
esmagado para sempre a dor alheia e desconhecida, se a vida não fosse efémera,
se o homem santo tivesse sido capaz de não lhe resistir, se a vida não fosse
toda construída de mentiras, se a verdade pudesse não resultar em dor.
A verdade é agora esta morte, e Albano resistiu-lhe, conseguiu viver até não poder mais, e
cedeu aos seu básicos impulsos. Escutou as mesmas vozes de sempre, mas hoje levaram-no
finalmente para uma vida melhor.
O santo homem
dilacerou a carne e os ossos, o filho apagou-se e ateou finalmente o fogo ao pai
pedastra que dele abusou. Dedicou-lhe a última oração, a alma exasperada acabou
de cumprir com o seu dever, e nada mais!
E à medida que
a aldeia acorda, mais inútil se sente, mais gasta e silenciosa e gélida se torna,
e as almas fantasmagóricas escapam-se das entranhas da terra devorando o granito
escuro e o mármore amarelecido de todas as lápides. Madalena chora todos os
dias depois daquele, e pesa-lhe tanto o coração. Já não consegue reconhecer a
feição de Albano, a bala dilacerou-os a ambos, a mesma bala dolorosa percorreu o
ar nas medidas exatas dos seus desesperos. Ali estava uma coisa que Lavinhos inteira
nunca imaginou poder acontecer.
- Tira os teus olhos
de mim, Madalena, os teus olhos meigos não foram feitos para atravessar esta
abóbada inexistente. No fundo o que nós dois não queríamos era que esta noite acabasse
por chegar.
A velha Leocádia
não mais se atreveu a levantar a voz.
Ali já estava
tudo dito...
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