59 - A VIDA DOS LEPIDÓPTEROS


A aldeia inteira desatou a gritar diante da mentira verdadeira. As velhas gritaram para melhor separarem a mentira da verdade. Gritaram a clamar que o homem Santo desapareceu perante a figura da mulher-puta que o seduziu, e esses brados ecoaram pela noite com os passos das invejosas que continuavam a tentar subverter a razão expelindo ódio e rancor. Albano e Madalena tinham subvertido o mundo, e quanto mais o diziam, mais as velhas acreditavam, e mais gritos cresciam pelas ruelas de Lavinhos, até que se escutou o primeiro “Temos de cuspir-lhes na cara! Cuspir e depois matar a puta e o padreco!”
Madalena tinha ido falar com Albano, tinha ido suplicar por uma vida que queria mais sua. E os gritos apareceram — gritos de espanto, de dor e de prazer, gritos que se juntaram aos de Albano que estavam sufocados por anos inteiros de uma cólera contida. Os amantes separaram os corpos das almas antigas como dois pequenos lepidópteros — Eu não me reconheço, senhor padre, … quem sou, que outra mulher é esta a falar uma linguagem intruja. O senhor que eu admiro me engrandece, o senhor que eu admiro deu importância à minha teia secreta, e agora cavalgo por cima de medo... com o desejo a falar mais alto! Fale mais alto, Albano, diga-me que a vida finalmente me pertence, diga-me que deixei de ser uma mera aparência de mim.
Se a lógica tivesse imperado por um qualquer acaso, talvez Albano não se tivesse deixado transformar — Somos doidos? Sou um doido? De que recanto da minha alma chegou esta minha vontade de te explorar? O teu hálito doce entontece-me. Serei doido em obedecer-te, mas preciso ver-te inteirinha, perceber melhor quem és, viajar até ao fundo de ti. O teu rosto está de tal maneira entranhado no meu ser que sem ele já não existo.
Os dois dissolveram-se um no outro, ali no chão deixaram de existir, eram somente consciência, palavras pertencententes a duas vidas ainda por acontecer. Amantes temerosos, seres estranhos, lepidópteros entrelaçados um no outro, a beijarem-se nas novas bocas, a saborearem as pequenas novas línguas sem remorso algum — já não têm medo, é um amor inexplicável, tão intenso e profundo e imenso que os assiste.
Madalena era feita de vida, ali amava e o seu pensamento não encontrava limites. Albano deixar-se-ia matar para poder sentir a mesma coisa. Na sua vida tudo foi inútil, mas agora não, agora era um pequeno lepidóptero amante às portas do céu. ­— Estamos no céu ou no inferno, Madalena? Tu enroscas-te com tal perícia, não te desmanches, meu amor! Estamos no céu ou no inferno? Ouço gritos lá fora, reconheço a voz de Leocádia por cima das outras vozes que berram no infinito. Vão-nos desfazer, meu amor, mas o meu dever é apenas o de te servir, Madalena, meu amor! — E assim muito depressa se encontraram de novo diante daquela coisa a que chamavam vida real que não foi feita para eles. Estavam nus, atirados de repente um de encontro ao outro, entre quatro paredes onde morava simultaneamente o céu e o inferno.
Leocádia desfazia o drama supremo da lúxuria ao mesmo tempo que vociferava a cólera ao infinito. O seu dever era decifrar o mal, não era fazer o mal, assim dizia. Duas figuras fizeram amor como nunca se tinha visto em Lavinhos. Uma felicidade que nunca chegaram a entender.
Os brados das velhas ecoaram com vozes coléricas e esforçadas.
Um homem, Albano, um santo homem, estava ajoelhado junto ao altar mais sagrado daquela cidade sensual chamada Madalena. — Ontem tu ainda não existias, tu na realidade não existes. Há uma única coisa visível e bem real a avançar dentro de mim, e vem direita a mim, e nada nem ninguém poderá deter. Tu não existes e eu tenho de te inventar para conseguir ter forças para caminhar para o meu estúpido destino. Tu não existes e obrigas-me a avançar para este fim grotesco. Madalena, estou nas tuas mãos. Ó Deus meu, Tu não existes, Madalena não existe neste nosso mundo absurdo onde me encontro e do qual me fartei!
O condenado sabia que ninguém o poderia salvar. Aquela força cega que sempre carregou consigo existiu nele por uma última vez. A mão direita apertou a arma fria com força, com muita força. — Madalena, tu tens de existir! Por amor de Deus, por tudo aquilo que sofremos e pelo que criamos, Madalena, és o nome e a única razão para aquilo que eu agora vou fazer. Aqui me mato pois só quero que existas…
Foi simples!
A verdade que Albano tanto desejara chegou de madrugada, ele assim o quis, e tudo passou a ser verdade.
A Fé maior chegou com cheiro a pólvora, mais viva que todas as vidas.
Albano conseguiu ser verdadeiro, e foi Madalena quem o salvou.

O tiro acabou de imediato com todos os gritos mentirosos. As velhas ocultaram a raiva. Albano pôde salvar a verdade, bastou-lhe pegar na arma e descarregar o desespero do mundo contra si.

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