58 - UMA ALMA IGUAL À TUA



Marília sabe do que Napoleão é capaz. Se em alguma hora, em algum minuto, alguém tão doente como Lucas pastor se atrever a olhá-la e a tocá-la com aquelas mãos descaradas, o amante-urso destroçá-lo-á num instante.

A grande nave afunilada é capaz de medir e indicar com correção a distância que falta até a eternidade, encontra-se diante dela no grandioso ecrã em números cintilantes que não param de aumentar. A alma de Marília é a alma de Perpétuo que a perseguiu até os seus mundos subterrâneos aqui se virem encontrar. Os dois apontaram na direção do céu e lançaram um grito de espanto quando descobriram a nave pela primeira vez. De todas as outras vezes que a viram, não a conseguiram descrever. As palavras paravam mal o bafo lhe saia das bocas, e só com grande dificuldade o menino-poeta conseguiu comunicar parte da história ao Toninho Faneca, que assim ficou a saber do objeto voador, quais as cores das suas luzes e quais as nuvens onde se escondia. — Como eu te disse, Toninho, vi um objeto afunilado e só a ti contei a história! Só a ti, porque és meu amigo e uma figura muita silenciosa. Também há muito tempo me persegues, tal como eu persigo a minha irmã. A Marília tem andado triste e calada, e eu que pensava que ela era toda feita de sorrisos. Envolveu-se num silêncio profundo desde a última vez que desceu das montanhas. Eu já mal a reconheço!

Marília abraça o corpo imenso de Napoleão e nele grita à vontade! Agora, que o pior já aconteceu, tanto lhe faz resistir ou deixar-se apanhar, agora sabe que o pior é ainda não poder ver o irmão-poeta como um confidente e amigo, agora sabe que os dois se voltarão a encontrar passados muitos anos, agora estão a representar esta verdade chamada presente e ainda não se podem ver como realmente são.

Lucas é tal e qual um bicho carregado de dúvidas. A sua vida nem lhe pertence, é apenas aguardente a devolver-lhe o verdadeiro ser e aquilo que ali acontece é algo que só ele queria ver. O ser grotesco e cruel em que se transformou é feito de ideias sádicas construídas de álcool, dor e pouca astúcia. As raparigas seguiram direitinhas aos seus apetites e ele não conseguiu conter os instintos… ei-las agora ali abandonadas, ensanguentadas, tão esventradas e esfarrapadas. Lucas entrou numa outra vida, sem fé ou Deus ou regras, onde apenas o instinto lhe impõe as ações. Agora é por ela que suspira, agora e sempre, a “sua” Marília, a mais bela das mulheres-bicho, a única que ele acompanhou sem ter destilado todo o mal de que era capaz. Faltou-lhe a coragem para combater o urso horrível que a protegeu, ficou quieto, a arfar, todo nu e com todas as mentiras do mundo agarradas aos dentes. Estava ali tão capaz de a matar e de espancar, e de a amar e violar e esventrar, e todas as palavras foram inúteis porque estava nu diante de uma imensidade de músculos, pêlos e garras com os quais jamais poderia lutar. O momento só não foi trágico porque Marília riu do homem-horror. Na sua essência, Lucas pastor era já um cadáver em decomposição pois nele as luzes da própria alma estavam reduzidas a sombra e negrume. Em Lavinhos havia outra igual à sua, era a alma de Leocádia, a anciã que jurava conseguir ler como ninguém as vidas dos outros.

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