57 - EXORCISMO



As velhas da aldeia estavam todas ali, estavam todas ali muito agarradinhas umas às outras a escutar as palavras ferozes cuspidas da boca de Eulália que eram mais do inferno do que do céu, apesar de todos os “valha-nos Deus Nosso Senhor”. Ali não existia Deus nenhum, ali arremetiam-se as comadres umas de encontro às outras para vomitar cólera aos pontapés, os olhos a chispar uma luminosidade absurda, feroz, e o ar impuro que respiravam ajudava a decorar cada nova frase com uma malícia magistral. Ali a anciã juíza Eulália dormia com todas as mulheres-demónio que lhe obedeciam cegamente, criadas como animais de curral, ali estava a Rogéria e a Idalécia, ali se benziam a honrada Serafina de Jesus, a Carmina e a Teodora, tão respeitosas, tão beatas e escrupulosas. Eulália estava cega de si própria, e quanto mais se venerava, menos usava a cabeça com rigor:
- Aí está o homem cabrão, filho de Lúcifer, despido em frente à mulher-puta, o homem nu, a fingir conhecer o verdadeiro amor com a coisa já prenhe e desordenada e encarniçada de luxúria, ó Satanás, ó Belzebu, ó Demo bichoso e bexigoso, bicho maior em frente de todos os outros bichos trágicos e nus!
Rangeu a Teodora mais a Leocádia, e todas as outras que fitavam a anciã venenosa ali estatelada no meio delas, entretida a carpir e a tecer mais e mais mentiras, a reinventar as falsidades de que era feita a vida de Lavinhos, e até as fisionomias das palavras que assim forjava se descompunham e redescobriam muito mais repintadas com os seus rasgos poéticos. Mostravam os dentes negros umas às outras, numa hora em que a aldeia toda dormia, as mais de vinte bocas a falar ao mesmo tempo, a venerar o céu e o inferno da mesma maneira, pois se já não sabiam discernir o que era o bem e o mal, ou onde acabava um e começava o outro.
Eulália estava de rastos, guinchava e espumava branco da boca porque a sua realidade se tinha alterado e o seu sonho-pesadelo adquirira uma proporção que deixou de lhe caber na alma. Atirou-se de novo para o chão e ali ficou, toda enrodilhada e quase desfeita, ali sufocava a espernear, para tentar não morrer. Estava à espera não sabia de quê, e num esforço para não ter de se levantar, começou a andar de rastos como a víbora que nela habitava e que vivia apenas para aquilo, para aquele teatro amargurado e mesquinho que se habituara a construir e que já não compreendia.
- O monstro hediondo está aqui mesmo atrás de mim, está aqui ao meu lado a falar dessas tragédias, … Mentiras, são só mentiras, para o verme Albano já não há palavras nem rezas que lhe valham, e quanto à puta Madalena, há de desaparecer-lhe a alma do universo. — O pior deste drama é que nenhuma das velhas Lavinhenses sabia ao certo o que fazia por ali. Teodora começou a gritar, e com ela gritaram todas as outras, postas de pé em redor à velha juíza que rodopiava e serpenteava de maneira grotesca pelo chão. Deram as mãos umas às outras e depois começaram a ranger os dentes e os olhos adquiriram uma névoa fixa que não mais lhes permitiu enxergar. O espanto perante o sucedido causou-lhes uma ferocidade tal que as velhas começaram a agredir-se violentamente, enquanto choravam, e as suas vozes tornaram-se tão invisíveis como elas, tão invisíveis como Lavinhos, tal a dimensão da raiva, da inveja e do desespero. Caminhavam para um fim doloroso, enquanto se rasgavam e batiam, alimentadas pelas regras daquela dolorosa cegueira.
- És tu! És tu, padre cabrão! És tu, Albano, quem nos transformas com os teus pecados nestas criaturas cegas que aqui se reduzem a sangue, lágrimas e dor. — Leocádia ergueu-se num repente daquele soalho frio e repugnante, passou as mãos esquálidas pelas faces de metade da assembleia, e pelos cabelos e crânios da outra metade. Aquela espécie de exorcismo feroz era a vertigem que a juíza necessitava para sobreviver! Depois de impôr alguma tranquilidade à assembleia, disparou um berro de tal maneira transfigurado e agudo que as névoas alcalinas foram imediatamente limpas dos olhos das anciãs, que ficaram atónitas.
- Adoro-vos, minhas irmãs, amo-vos a todas do fundo do coração, e o que aqui está dito, dito está. Bem no fundo de meu velho coração, sinto que se estraga já a minha outra vida. Este mundo amoral está quase reescrito, mas falta ainda anotar o desenlace maior de todos os dramas. Escondido no alto dos telhados o menino-poeta, filho bastardo da mulher-puta, escreve com rigor esta nossa ficção, e não se contém, e nenhuma força parece ser capaz de o conter. Fala-me esse homem diferente do homem-menino que outrora gania num quarto escuro com medo da morte. Tentou suprimi-la inventando uma irmã-ilusão.

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