56 - TU E EU



Os pensamentos naturais e artificiais são continuamente arquivados no gigantesco aparelho voador, capturados de maneira subtil pela ímpar arquitetura da nave afunilada, autêntica catedral voadora de formas ogivais colocadas umas por cima das outras. Para esquecer os seus pensamentos mais disformes, Perpétuo deambula pelos caminhos horas a fio, tal como veio ao mundo, sem se conseguir deter. Por mais esforços que faça não desiste, parar é quase morrer, é como se ele se transfigurasse em milhares de personagens ou naqueles fantasmas desnudados que o acompanham no caminho e lhe dissolvem os pensamentos como se tivessem um destino a cumprir. Perpétuo pergunta a si mesmo se serão verdadeiras aquelas figuras que avançam consigo um passo de cada vez.
O poeta não consegue suportar mais imaginar-se sozinho num mundo sem luz nem ternura. Por momentos fica com medo de desaparecer e depois reaparecer do outro lado do espaço-tempo num mundo ainda mais desfigurado e burlesco, ainda mais transfigurado do que este seu que já nada lhe diz.
- O momento primeiro em que nos vimos nunca mais se irá repetir, eu falava e sabia que alguém me escutava, sabia que tu me escutavas… Hoje questiono as vezes infinitas em que esse nosso primeiro encontro aconteceu, interrogo-me enquanto avanço despido, cercado por estas centenas de figurantes que sei agora fazerem parte do meu ser. Somos duas almas distintas, Marília, uma crente a outra não crente, uma cobarde e a outra audaciosa, uma atenta e observadora, outra falante e acusadora, e eu serei sempre a alma pior. Somos feitos um do outro, um para o outro, pertencemo-nos e complicamos tudo com receios infundados, eu sinto-me conduzido pelas ogivas avassaladoras da nave-mãe que nos abriga e me diz que te pertenço e tu a mim, e as almas que me acompanham adivinham o mesmo universo complicado e depois olham-me e separam todas as minúsculas parcelas do meu ser. Desmaterializam-me com o olhar a léguas de distância de Lavinhos num sítio misterioso e quase impenetrável do bosque que cobre as montanhas. Ninguém se interessa com o que aqui se passa, e o poeta que inventei em mim ainda raspa as paredes do quarto todas as noites, e grita, brada e clama todas as noites quase a sufocar com os gritos. Todas as noites o poeta que eu sou volta a ensaiar mais uma desmaterialização espetacular, mas nada disso parece interessar a quem quer que seja. Eu mergulho cada vez mais fundo nas memórias que tenho de ti, as nossas memórias, são elas que me dão o alento necessário, tudo o que necessito para poder, finalmente, voltar a ser quem era. — é mesmo só isso que agora me interessa.

Comentários