55 - AMOR É...
Perpétuo só
dispõe desta outra vida que ainda não existe. Perpétuo só dispõe desta vida
instintiva onde se deixa iludir, é um sentimento falso e muito irónico! Detesta
a vida que descobriu em Lavinhos, detesta-a com a mesma alegria com que detesta
o Deus que o criou, o mesmo Deus que ele bem cedo soube não existir.
- És uma besta!
— disse-lhe Madalena num ataque de fúria, a mulher-mãe cujas ideias religiosas
constrangiam as ações. A mulher que possuía dentro dela um coração de pecadora
a quem se habituou a obedecer. Ela chamava-lhe o “seu dever”. A mulher-mãe era
muito cristã e tentou, como pôde, lutar contra os instintos que facilmente a
venceram.
- És uma besta!
Não sei a quem raio é que tu saíste assim tão absurdo e ilógico. Parece que não
tens consciência das coisas, e arruínas a tua e a minha vida. És um poço de
egoísmo, não tens qualquer consideração por mim nem pelos outros, só pensas em
ti e em mais ninguém… é só isso que verdadeiramente te interessa.
Perpétuo cresceu
e evoluiu obediente à sua grande missão. Consistente com a sua loucura, o
menino-poeta bem cedo se habituou a matar a verdade que sempre abominou. Aprendeu
a suprimir os erros da humanidade presente e futura retalhando-a aos pedaços. A
sua insubordinação começou numa idade precoce com Perpétuo a jurar a si próprio
criar reinos repletos de eloquência, e dos céus começaram então a
chegar os minutos, as horas, e esplêndidos dias inteiros saturados de palavras.
O poeta cresceu
alimentado por este seu hábito que aprendeu a domesticar, mas que sempre
exerceu um forte domínio. Quando podia, dormia muito para não ter que pensar,
hibernava nas suas grutas imaginárias e não imaginárias modificando as vidas dos
outros. Perpétuo descobriu que faltava ternura a Lavinhos, e que falta ternura
e amor no mundo, um mundo que já acabou. A base de toda a existência é o amor,
e no seu mundo enlouquecido tinha acabado o amor.
Para Lucas
pastor, as mulheres eram meros animais de caça, presas dramáticas prestes a
assumir as proporções de uma tragédia. Sob as sombras da floresta convertia-se
em demónio sanguinário, um verme-incómodo saturado por sonhos ordinários
capazes de o transformar num mago do deboche, mestre do medo, profeta das artes
mais nojentas de maltratar. Em Lavinhos já havia quem suspeitasse do seu
cantarolar, e na aldeia, como em tantas outras terras, as suspeitas acerca do
seu caráter começaram a crescer na mesma proporção das suas fartas
borracheiras. Sob o efeito do álcool, desaparecia o ridículo e pobre pastor e
aparecia aquela figura hedionda que dentro dele o impelia a vociferar
excrescências e a maldizer todas as mulheres. A bebida dava-lhe aquela urticária
de querer fugir de si mesmo, separar-se ali mesmo em frente aos companheiros de
bebida, separar a carne dos ossos, e só conseguia acalmar-se à custa de
conversas acerca de crimes alucinados e de muitas mulheres-loucura a correrem à
sua frente, a fingirem amá-lo, sorridentes, e ele a iludir-se mais uma vez num
fantasma sanguinário que as perseguia, capaz de tudo, capaz de lhe separar a
carne inteirinha dos ossos, até que a grande sombra da morte lhes entravasse as
vidas. Ei-las reduzidas a vários pedaços de carne desfeita, e nem valia a pena tentarem
lutar ou resistir.
- Homem que se
preze só assim as pode dominar! As mulheres são umas putas, e merecem ser todas
esfarrapadas aos pedaços, e depois vou perguntar-lhes baixinho: — Valeu a pena,
vaca? Valeu a pena, cornuda? Cabra de merda, valeu a pena, valeu?? Depois dessa
sábia lição, quem é, afinal de contas, o vencedor…?
A taberna do
Vitorino carregou-se de um silêncio surpreendente.
- É escusado darem
luta enquanto lhes desenho cruzes vermelhas no lombo. É a razão quem me guia, …
ela e Deus Nosso Senhor, a quem rezo e me confesso todos os dias…
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