54 - OS GATOS DE GENOVEVA



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Depois de ter atravessado incólume todos os anos destas vidas, acordei perante uma visão nítida da minha serra envolta em neblina e com um sol imenso preparado para a romper. As montanhas sabem tudo acerca de todas as coisas, vão dizer-me tudo, vão contar-me como foi que aqui cheguei e para onde me levaram os mochos. Estavam aqui escondidos, e aqui se preparavam para me enterrar, não fossem os gatos vadios da D. Genoveva. A bicharada assustou-os, desvendou-lhes o vício e os pássaros alienígenas desapareceram, ocultos, sem deixar rasto.

Este é o sítio onde por vezes renasço, reconheço muitos segredos deste lugar. As famílias são outras mas Lavinhos está sempre igual, é sempre a mesma aldeia quando regresso, mas os meus pais, que não vejo há anos, já cá não estão. Aqui recordo-me de também ter sido criado, e cresci tão rapidamente como as serras que rodeiam o lugar. Diante da bela paisagem, tão real como ilusória, sonho meu que sempre alimento, transformado em realidade. Aqui está mais uma vez o sonho, quase sempre igual, eu a chegar desta mesma maneira extraordinária, sem qualquer roupa no corpo, nu para toda a gente poder ver.

E eis que surge de repente a luz do sol em todo o seu esplendor para iluminar a montanha…

- O Perpétuo dormiu de novo no mato! — dizem os aldeões a olhar para mim.

- Ele há cada maluquinho nesta vida. Se a Madalena te visse nestes preparos, ela bem sabia como tu eras, por isso te criou escondido de todos! — e logo respondo:

- Eu sou ilógico,… ainda agora aqui cheguei, e nem sei bem dizer de quem sou filho. Preciso de uma mãe que nunca tenha sido mãe.

- O que tu precisas é de alguém que te faça desaparecer para bem longe daqui! O que tu precisavas é que a tua mãe estivesse viva para te tratar da saúde! Coitada da Madalena que sempre se sacrificou para te criar, e deve continuar a sacrificar-se lá no Céu, a pedir aos santinhos para que desapareças.

- Eu desapareço, juro-vos do fundo do coração que não falta muito para que esse dia aconteça. Eu sei muito bem o que pensava a senhora minha mãe, sempre nos entendemos, e eu sempre a respeitei, mesmo quando ela resolveu amar o padre Albano, mesmo quando ela nos resolveu abandonar, mesmo quando eu fugia para tentar alcançar a minha irmã Marília, para passear com ela, agarrá-la e mostrar-vos como era verdadeira e não uma irmã-mentira. Vocês é que são todos construídos de crueldade, toda a minha vida me castigaram e nenhum de vós fez caso de mim. Desprezam-me, sempre me desprezaram. Às vezes nem sei porque regresso, é uma maldade dos mochos alienígenas trazerem-me sempre de volta a casa…

- Tens razão, Perpétuo, tu devias era de ficar para sempre nesse tal buraco onde tanto gostas de te enfiar.

- É lá que mora a minha irmã Marília e o seu amante Napoleão. Afinal de contas, foram eles que me criaram e sacrificaram parte do seu amor para eu sobreviver. Criaram-me, e não lhes posso exigir mais nada.

Lavinhos transformou-se neste monumental monumento de egoísmo. Acrescentar amor à aldeia levaria anos, talvez décadas de trabalho inglório, e de resto até não me custaria nada voltar a desaparecer. Não me custaria mesmo nada. É o sonho mau a dar-me mais uma ordem. Tenho de lhe obedecer, e obedeço-lhe como me habituei a obedecer à vida que de mim fez um farrapo.

Apenas mais um minuto…

… e esse minuto demora um século a chegar…

Apenas mais um minutinho…

…nesse minuto está concentrado todo o tempo, o conhecido e o desconhecido, muito contraído, ainda irreconhecível, esse único minuto é, deveras, um minuto supremo…

Sempre que viajo pelo tempo sou arrastado do céu ao inferno, escuto milhões de vozes que falam todas ao mesmo tempo, balbucio palavras incongruentes, de olhos fechados, atravesso recantos obscuros da alma, sou sacudido de revolta em revolta, extingue-se-me a vida milhares de vezes, saio da viagem exausto, com todo o peso da montanha de Lavinhos em cima de meu corpo desnudado, tombo no chão atapetado de terra húmida, diminuído, quase reduzido a pó, e foi outra vez assim...

Estes minutos são passados sozinho em contemplação, a ruína de todas as minhas vidas cansadas a pesar cada vez mais. Acabo de regressar tão ou mais gasto do que era… e agora já nem reconheço as minhas feições.

Tenho o corpo mutilado, acordei de novo no chão imaculado no sítio do costume, uma e duas e três vezes, e um cento de vezes depois… limpo com todo o cuidado as nódoas negras de meu corpo, e sento-me, e volto de novo a escrever.

 ­- Só penso em ti, Marília, tens a obrigação de me escutar. És a minha irmã, a minha única amiga, fui eu que te criei para matar esta minha fome de solidão, e agora o nosso sonho é amargo. Criei-te para que pudéssemos sofrer e amar em conjunto, foi só para isso que te criei.

Ser mentiroso é a maior das riquezas, as pessoas precisam sempre de mentir. Não minto com a língua, minto com as ideias e ideais, invento tudo para nunca ter de dizer o que verdadeiramente sinto. Há pessoas que conseguem dizer as verdades, e eu fujo delas, considero-as inconvenientes e muito desagradáveis. Há que fingir para conseguir sobreviver, e mentir não custa nada.



O corpo desnudado de Perpétuo esteve sempre ali, deitado na cama, e pela janela aberta via-se o luar e os montes e os mochos, e escutavam-se os gatos da Genoveva que não paravam de miar.

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