53 - O INFERNO FICA JUNTO DO CÉU



Chegámos. A montanha reduzida a pó. Sobre ela apenas desespero imenso. Lucas pastor desvendou a todos o vício oculto, e que lugar e tempo escolheu ele para fazer rebentar a miséria. O segredo já não lhe cabia no peito, resolveu saltar e ele disse tudo. A maldade surgiu-lhe como um filho bastardo que ele não via há anos e o submeteu à sua vontade para criar aquela magistral obra-prima — No ecrã principal da grande nave afunilada comunica-se o pesadelo desalinhado de Lucas pastor a ser transformado em realidade. Ali ainda pode ser destruído, ali até pode ficar a pairar eternamente, o sonho tragédia sonhado com uma inveja construída com fel. Dulce aparece em grande plano, com a boca tapada, o corpo a sangrar já feito farrapo, quase desfalecida, as mãos embrutecidas e sádicas do pastor a impedir-lhe os movimentos. Ali se apresenta a dor com a mesma luminosidade de um qualquer sol, como os sonhos dos adultos, um império de impiedade, um pesadelo-sonho que ninguém queria sonhar. Marília reconhece a sua própria alma perdida naquele tempo e naquele espaço, como se tudo tivesse acontecido apenas ontem  — impiedade ilógica ali criada, ali escondida. Napoleão ainda dorme, ela não quer que ele acorde para se recordar do assunto, não agora que vai ser mãe — Ali está a mãe por acontecer com o filho-urso a crescer-lhe na barriga — Tens razão, meu filho, o papá não pode recordar este sonho ilógico. Tenho de lhe dar a boa-nova, vou dizer-lhe que serás seu filho, serás o filho de Napoleão. Estou para aqui a parecer-me cada vez mais com uma mãe que nunca o foi — Tens razão, meu filho, tens toda a razão! O que é preciso é que nós nunca nos separemos, o que é preciso é continuarmos a seguir esta lógica e não estragarmos tudo agora, não agora que serei mãe. Casarei com o teu pai Napoleão e permaneceremos aqui escondidos nesta nave afunilada até terminarmos a hibernação. É um pequeno sacrifício para que possas crescer e engrandecer.

O filme miserável de Lucas pastor desaparece do ecrã e Marília lança um suspiro de alívio. Quem lhe dera não ter de voltar a ver tamanha monstruosidade, e ficarão todos bem mais pobres se esse não for o caso.

Lucas criou a cerimónia monumental, o desrespeito que teve chamava-lhe amor. Criou-o embevecido com aquele travo de aguardente velha a adocicar-lhe a língua. Não lhe custava mesmo nada, eram demais as ordens que tinha para cumprir. O pastor obedecia, obedecia, obedeceu sempre à bebida, aos silêncios, à solidão, à desconsideração, e desobedeceu à vida que dele fez um trapo.

Apenas um minuto, um minuto chegou para as matar, e esse minuto chegava de novo, um minuto e nada mais, e nesse minuto a jovem Dulce ficou contraída, irreconhecível, uma figura desconsertada feita com pedaços do seu corpo dispersados num horror.

Era um minuto sereno.

Lucas sentia-se arrastado para ele mais uma vez.

O céu era o inferno, o seu inferno perto do céu, e ele a pronunciar palavras que nunca pronunciou, nem mesmo no mais obscuro recanto da sua alma — Não te atrevas, vida bela, mulher bela, a meter de novo o diabo no saco! — Dulce estava tão cansada, estava tão perdida, só lhe restava uma última expressão de dor mutilada a dizer que sim, e o corpo outrora imaculado aberto de par em par.

O pastor Lucas limpou-lhe depois a pele com extremo cuidado, nódoas e sangue e saliva e dor e morte, limpou-lhe a vida inteira naquele súbito instante com a ponta da faca afiada. Sentou-se junto à vítima a fazer de conta que sabia escrever o seu nome na mesa de carne, e nela acrescentou os últimos conselhos a dizer que só tinha pensado nela, e que tinha a obrigação de o escutar, e que devia amá-lo para todo o sempre

- Habitua-te, puta! Este é que é o grande segredo das nossas vidas!

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