52 - SE GRITO, É SOMENTE PORQUE TE AMO




Marília sabe gritar como ninguém, todas as noites grita, todas as noites e a todas as horas, e de cada vez que grita as mãos gigantes de Napoleão mergulham ainda mais fundo no seu corpo como se a fosse despedaçar. Era apenas isso que lhe interessava, acordar o seu urso amante do sono profundo, todas as noites e a todas as horas, sentir o hálito quente e doce do amante, sentir-se amada, engrandecida, nova por dentro e por fora, eterna, sem Deus nenhum! Na gruta profunda é tratada como uma fera, respira como uma selvagem. Ali está o urso-homem que a salvou, que atirou com a vida de Lucas pastor pela borda fora usando nele apenas a força das garras e os dentes muito arreganhados. Ali dorme como mulher-urso, criada pelo vento e as tempestades, com a respeitabilidade dos bosques e a educação com que se revestem certos bichos. Ali descobriu o amor que a reparou para toda a vida, ali foi amada e penetrada pela primeira vez. Marília sabe gritar como ninguém!

Ali estava aquele homem despido em frente a ela, estúpido pastor de má fama, e que não as largava: — ó Esperança, ó Trindade, ó Noémia, venham cá…, Marília, … vem cá puta de um cabrão, …vaca sarnenta!
A consideração para Lucas não existia. Lavinhos não existia para além das suas serras! Ali estavam todos feitos bichos em frente a bichos, e ele a caçar as presas igualzinho a um lobo velho e grotesco, nu e tão perigoso quanto trágico. Ali era um universo monstruoso a ranger, e os animais todos a mirá-lo de olhos arregalados, a uivar desesperados.
As moças todas estão ali estateladas, todas falsas, com as fisionomias desfeitas e os corpos descompostos.
Soou em Lavinhos o sino a rebate, marcou a hora absurda em que as encontraram assim, e eu descobri que não era possível existir uma hora mais sentimental do que aquela em que as velhas testemunharam as caras das herdeiras, das netas, hora trágica e poética em que Lavinhos mergulhou nas trevas. Depois de as verem, desmaiaram, depois mostraram os dentes e bateram nos próprios corpos como feras raivosas. A hora trágica que todas anteciparam tinha acabado de chegar. Lavinhos pintou-se de sangue, a aldeia toda perdeu as forças, e a tragédia desmascarou as gentes que depressa se reconheceram.
- Mortas! Estão mortas! Mortas, todas mortinhas e de rastos, … ai quem acode, ai quem me ajuda, ai Jesus Cristo, ai Deus Nosso Senhor!! — Gritaram, as velhas gritaram, mas não gritaram mais que Marília porque já não a conseguiam ver.
Marília sabe gritar como ninguém, todas as noites grita, todas as noites e a todas as horas, e de cada vez que grita as mãos gigantes de Napoleão mergulham ainda mais fundo no seu corpo como se a fosse despedaçar. Era apenas isso que lhe interessava, acordar com o urso amante perto de si, sentir-lhe o hálito quente e doce, sentir-se amada, engrandecida, nova por dentro e por fora, eterna, sem Deus nenhum!

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