44 - CINEMATOGRAFIA
Perpétuo cresceu
e passou muito tempo a cismar na possibilidade das almas serem imortais, e por
isso mesmo demorou a entender que se podia cinematografar todo o tipo de vidas,
e de mortes também. Filmar nascimentos e todos os crescimentos, filmar a
própria vida, para depois se poder dizer que existimos e fomos criados. O
menino poeta daria tudo para conseguir voltar atrás no tempo com uma câmara para
imortalizar a realidade que foi aquela noite em que se entreteve a abrir
grandes buracos numa parede.
Ninguém me
ouviu, ninguém deu por mim, talvez só mesmo aquele mocho assustador. Foi fazer
queixinhas, noticiou às montanhas e a todos os animais do bosque o que os seus
olhos vermelhos decifraram naquele meu quarto pequeno. Se eu tivesse tido a
ventura de filmar tudo aquilo, podia agora mostrar a todos qual era o seu
tamanho e a tonalidade de seus olhos. Mas as imagens da memória não deixam
vestígios, são sonhos ignorados que não deixam vestígio do que se passou — a
dor desapareceu, até hoje, e novas são estas lágrimas que não me atrevo a controlar.
Não valem nada, deixaram de ser novas e inocentes, valem menos do que a
memória não filmada desse mocho alienígena. Antes tinha toda a inocência do
mundo, com ela atrevi-me a apreciar os meus sonhos e pesadelos por sabê-los
apenas meus. Agora só me queixo por não ter sido capaz de os filmar!
Perpétuo escuta
os passos da morte convocada pela doença maldita. Marília tapa-o com uma manta,
faz ainda muito frio…
- Deixa-me!
Deixa-me, mana! Deixa-me só, vai-te lá embora. O que é que ainda estás aqui a
fazer a esta hora da noite? Adormeci,… devias ter aproveitado para ires tratar
da tua vida. Leva as chaves e fecha o apartamento. Preciso de voltar a
adormecer. Deixa-me, vai… eu fico bem.
A beleza é como
a luz das estrelas, é mentirosa e rapidamente desvanece. É só a isto que
ficamos reduzidos — sabes se amanhã ainda estamos vivos? Mana, como é que tu
podes saber?
Marília não
consegue desprender-se dele. Atrás daquele dessassombro vem sempre um outro, e
a dor é esta coisa imensa que se agiganta de cada vez que o visita, fica cada
vez maior, assume proporções inimagináveis e alastra pelas paredes e teto e
chão e móveis e cortinas e roupas e ela sente o peito a desbravar estradas
douradas e fictícias, naves estranhas com casulos de vidro capazes de curar
Perpétuo, o seu querido irmão. Tudo se reduz a isto, é só a isto que Marília
aprendeu a dar valor.
- Cala-te,
achas mesmo que te vou deixar assim a arder em febre? És parvo, às vezes
consegues mesmo ser parvinho. Bebe ao menos este copo de água, Perpétuo. Tens
de te manter hidratado.
Lá fora, na
rua, naves menos misteriosas acabam de levantar voo. Os jatos potentes dos seus
motores levam consigo as almas dos viajantes, o universo continua assim a
espreguiçar-se, absurdo e ilógico, e onde está Deus?
- A Morte nunca
será bela – diz-lhe Perpétuo, com a doença a toldar-lhe a razão. Será mais uma
de suas misteriosas divagações, e continua – Prepara-te, Marília. Os problemas de
todas as vidas é que a morte chega e tudo se resolve, tudo, absolutamente tudo.
A vida gira, rodopia, é um carrossel a dançar, e a música da vida engana a
morte, e a literatura que aprendi a entornar em cima dela cria esta ilusão. Na
realidade só existe morte a cores, e nós aprendemos a chamar-lhe vida, porque
ninguém deseja morrer. Eu não quero perder a consciência deste universo que não
conheço, e eu sem ti não sou nada, Marília. Tu és o meu infinito, e a não ser
que essa outra coisa nos separe, seremos sempre eternos, seremos infinitos.
- És mesmo
estúpido? Olha só do que tu te foste lembrar?
Mas Perpétuo
cresceu a acreditar que Deus o criou, e ele a Marília, e ela a Napoleão, e ele
assim que a viu logo a protegeu — o urso depois criou um Deus semelhante a ele,
um gigantesco Deus verdade em forma de urso poderoso, um ser capaz de comandar
uma nave afunilada e de construir outros mundos — outros universos — outros céus
— e de viajar entre eles, pelo meio deles, e em todos os tempos gerados.
Perpétuo cresceu, passou a vida a aprender a fingir, e agora tudo o que ele
escreve existe,… Talvez Marília seja a sua única não ficção.
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