43 - A NOITE É MÁ, A NOITE É ESCURA



Aquela constelação é a Ursa Maior. Agora sei que se parece mais a uma panela quando unimos as estrelas umas às outras, e fazem-me rir as panelas das Ursas, e da Menor descobrir-lhe a Polar, equidistante de Cassiopeia que nasce junto ao horizonte. As estrelas mentem, são mentirosas, algumas já nem têm existência, são vulgares, aldrabam e ocultam a verdade do tempo porque a sua luz demora a viajar. Leva uma pequena eternidade, segue calada e submissa, e quando aqui chega, mente. Mentem sempre as estrelas luminosas. Mentem enquanto podem, a mim e aos outros que gostam de as observar.
O firmamento é a maior sala de visitas — a mais dourada também, e a mais escura e silenciosa. O Toninho já não se atreve a pedir-me histórias, contenta-se em escutar os meus silêncios sem tirar os olhos de cima de mim. Sorri, é imortal quando sorri assim. Ilude-se, não possuo graça nenhuma, muito menos uma capaz de lhe pintar sorrisos no olhar. Mas ele lá sabe, é lá com ele, é como se estivesse à escuta das primeiras aldrabices pegadas que lhe contei, e da primeira vez que o fiz, ficou contente com a vida. Deitado de barriga para baixo, com as mãos a dar apoio ao queixo, não encontra mais nada a que se apegue, e faz gestos afirmativos com a cabeça para demonstrar o prazer que as minhas fábulas que causam. O Faneca remói dentro de si muitas coisas que lhe causam confusão, e desata a descoser as dúvidas em palavras sem grande significado.
- Mas, ó Perpétuo, isso é mesmo assim parecido a um funil?? E voa ou não voa? Como é que pode voar se dizes que está parado junto a um canto do céu? — insiste o Toninho, que não entende lá muito bem que nave é esta que anda no mundo a criar coisas tão esquisitas... — e essas coisas, esses bichos que tu encontraste, abriram-te os olhos para o futuro, ou vieram do futuro?
- Sabes o que te digo, o melhor é irmos à pesca amanhã de manhã bem cedinho! E não se fala mais nisto, ó Toninho, deixa para lá… deixa para lá.

No baú do tesouro do Cornelius Barbudo os dois caçadores de tesouros tinham encontrado cerca de doze mil vinténs. Quatrocentos vinténs de ouro e os restantes em prata, e do baú saltaram ainda seis colares e algumas pulseiras prateadas... depois de muito remexerem lá no fundo.
- Não podemos transportar este peso todo na nossa pequena embarcação, Toninho, vai ser uma desgraça se tentarmos levar o baú connosco rio acima, e com isto, e ainda mais isto!
Ficámos os dois calados antes de começarmos a falar para dentro de nós. A decisão difícil tinha de ser tomada. Decidimos dar uso ao mesmo fosso onde o acabámos de encontrar. Com rapidez voltámos a enterrar o tesouro, mesmo a tempo, é que a Marília já fala comigo, sinto que está quase a chegar, por isso resolvemos esconder o baú no mesmo lugar, menos pesado, aliviado de alguns vinténs…
- Temos de sair daqui depressa, Toninho, adivinha-se um temporal tremendo disposto a fazer-nos em farrapos. E estou sem vontade nenhuma de falar à sombra da minha irmã Marília, que se nos vir aqui aos dois, já não nos larga!
O Toninho acaba de tapar a boca a tempo de largar uma gargalhada. Estava quase a saltar-lhe da boca, e ele meteu-a outra vez lá para dentro, e agora avançamos com as mãos abertas que a noite adivinha-se imensa e molhada.

Nos céus de Lavinhos paira a nave afunilada que de quando em vez regressa do passado e do futuro. Perpétuo já perdeu a conta às noite passadas em cima do telhado, à espreita, sem nunca ter sido capaz de a observar. Fica para ali perdido, a sentir-se um inútil neste mundo, a sofrer, sem saber porque sofre, não lhe cabem dentro do peito minúsculo de menino poeta tantas desgraças, e onde estão as explicações para essas desgraças. De quando em vez levanta uma telha, perturba a laje de xisto e altera, propositadamente, a proteção escamada do edifício para amortecer a dor. Levanta o braço, ergue a telha, segura-a na mão a uma altura monstruosa, e a noite escura como breu, um negrume cada vez mais compacto e um esforço cada vez maior dos músculos frágeis do braço, e da mão, e dos dedos, para a conseguirem segurar.
Quanto mais negra é a noite, mais barulho fazem as telhas ao despedaçarem-se no meio do chão. Aumenta a altura do telhado, agitam-se as telhas e o braço fino de Perpétuo, e os dedos esquálidos que visitam, quase em delírio, mais e mais telhas, e são cada vez mais os espalhafatos tremendos que causam ao explodirem em cacos no meio do chão.
 Estes telhados estão cada vez mais desarrumados, mais sem graça nenhuma. Amanhã sou capaz de voltar aqui para os arrumar. A noite de hoje conseguiu irritar-me, a noite é má, a noite é escura, a noite está a ficar cada vez mais silenciosa, e eu não gosto do barulho que fazem os seus silêncios.

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