42 - PONTO DE PARTIDA



A aflição tremenda por não conseguir falar, a dor intensa de Marília toda concentrada no pescoço, principalmente na zona do hióide, e também um pouco acima das clavículas, os olhos cerrados enquanto se contorcia, já dourada, e a morte à espera de acontecer, a pele a ficar cada vez mais seca, Lucas a arrancar-lhe a vida do corpo — mas isso só não lhe bastava, era pouco, não chegava para nada! — o pastor aligeirava a pressão que exercia com os polegares muito abertos, enredados à volta da boca sem nunca tirar os olhos daquele corpo desnudado. O homem-monstro só emitia grunhidos entranhados em saliva amarelada, uma baba parecida com a lavagem onde costuma lavar as tesouras de ordenhar.
- Hás de falar, miúda, então agora já não falas? O gato comeu-te a língua, foi, ó grande puta? — e ela disse-lhe qualquer coisa sem esboçar um som... — e já não desmaiada, só esfarrapada, assustada e em total desespero, conseguiu soltar um rudimentar, Ah... — e naquele corpo esbelto e jovem de pessoa-ternura ainda morava a alma sua a lutar em completo desespero, e Marília conseguiu projetar um grito animalesco sobre as serras que se projetavam no ecrã — criou na parede da nave onde o irmão poeta se espreguiçava no chão aquilo tudo que lhe podia ter acontecido, não tivesse Napoleão aparecido para oferecer o bafo e as garras a Lucas pastor — ela trazia-o quase sempre consigo debaixo do xaile escuro que herdou da avó Alda, e invocava-o com urros tremendos, afinados ao detalhe, tão afinados que em nenhuma aflição ele lhe ficou por valer.
- A tua sorte, minha cabra, foi tu teres conseguido mais uma vez arrastar o urso para fora desse trapo velho que te protege.
Marília riu-se de si própria, talvez tivesse exagerado, talvez não devesse ter atiçado o pastor com palavras e pormenores embaraçosos, talvez esta história trágica tenha de ser reescrita desde o princípio para não ter de terminar assim. Por detrás das costas do menino poeta, naquela parede vazia de palavras, a ligação vídeo sentia-se cada vez mais luminosa, e um xaile negro apareceu em primeiro plano todo sujo com sangue, fezes, sémen e suor. Napoleão com os olhos rasos de lágrimas.

Perpétuo acordou com uma tristeza imensa metida dentro de si, ganhou novos contornos de dor e de grotesco, perdeu a graça e adquiriu tons carregado de uma desgraça sempre a aumentar, e as cores exageravam e engrossavam de dor a outrora imaculada parede do quarto de visitas.

A nave afunilada abriu uma outra entrada na sala, para espanto do poeta. De lá surgiram estranhas criaturas, umas atrás das outras, que vieram para o visitar. — Perpétuo ainda tem os olhos e o rosto lavado com lágrimas, insiste em não acreditar em nada do que ali se está a passar, em nada do que vê. E os mochos alienígenas teimam em chegar, e teimosos como são desatam a piar diante do menino poeta. Agitam-se as figuras com penas e asas disformes à sua frente, vestidas com sedas prateadas e uns chapéus capacete ornamentados com bizarros penachos dourados.
Um deles transforma-se em Lucas pastor, um ser esfarrapado a mexer o crânio despedaçado, para baixo e para cima, com um sorriso trocista a representar uma espécie de não-morte — e todas as outras figuras parecem sufocadas, todas estas figuras não-mortas, ridículas, avançam dois passos em direção a Perpétuo e tombam, inertes, desatadas em nevoeiros — todas essas neblinas são as damas de roxo paridas pelas mãos absurdas de Lucas pastor. Marília estava imitada numa delas, a olhar em redor, a receber o irmão de pé mesmo à sua frente.
E já não havia mais ninguém, só os dois manos neste acordar absurdo, sozinhos na grande sala de visitas da nave engrandecida.
- Já nasceste, mano, ainda não nasceste. Aqui nascem outros seres, e outras damas e outros manequins, aqui nascem e são forjados assim pelos sonhos maus que lhes ressaltam no escuro de uma qualquer noite mal dormida. É esse o ponto de partida para a vida, para a realidade. As velhas de Lavinhos gozam de prazer só de imaginar crianças como tu deitadas nas camas à espera que os pesadelos passem — Estão ali todas, projetadas naquela parede, naquela janela do teu quarto, a olhar lá para dentro do lado de fora da parede. Acabaram de passar pela casa do padre Albano, ainda estão trôpegas, com bafo de cão, a discursar sobre essa espécie de tragédia ridícula que são as suas não vidas!
A história entra numa outra fase.
As velhas gostam de lhe acrescentar ainda mais pormenores embaraçosos.
A narrativa torna-se muito obscura, e ainda mais dolorosa.

Carmina hesita em falar, hesita, mas as cócegas não eram iguais às outras que comummente sentia, era como se lhe tivessem arrancado pedaços inteiros da alma — e vai daí, ela disse: — Hoje é que o Lucas pastor se desgraçou de vez, Ai que o Demónio desceu dos céus até à serra de Lavinhos! Ai que Belzebu, e com ele todos os demónios, desceram dos céus à Terra para nos esfregar as vestes com sangue, morte e negrume!

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