41 - OS PECADOS DE LUCAS PASTOR



As filhas e netas de Lavinhos são mulheres capazes de admirar o mundo, mas só o que fica para cá das suas serras e veredas. Um outro mundo, bem maior que o delas, era o de Lucas pastor, que bem cedo se habituou a calcorrear mais espaços, a avançar por outras montanhas mais a norte e a ocidente.
Quando ajunta o rebanho, conta as cabeças, e reivindica um conjunto de tiques e pormenores antes de dar início às excursões. Repete várias vezes alguns rituais, hesita, volta ao princípio dos mesmos sempre que considera ter errado nos termos em que se exprimiu. E através de gestos e palavras desconexas, sentado a falar com os animais, sentia-se cada vez mais só, mais gasto e cansado, e a dor sujava-lhe a alma e embruteceu-o até que ficou com aquela tristeza toda metida em si. A conversa desconchavada tinha tanto de dor como de grotesco. Lucas enchia a boca com aguardente que depois bebia de um só trago com naturalidade. Aquilo dava-lhe uma certa imponência, depois arrotava, levava à boca um pedaço de pão seco e um bom naco de toucinho. O tom das montanhas carregava-se do tom das farsas que contava aos animais, e Lucas ria-se, e depois voltava a carregar a boca de aguardente, até lhe aumentarem as cores num exagero de vermelho, maltratando estômago e alma, e a vista toldava-se e muitos carneiros grotescos apresentaram-se à entrada da sala, em passo de irmandade medido com precisão, e um espanto súbito fez com que Lucas recuasse até tombar. E foi aí que lhe surgiram, pela primeira vez, aquelas visões das filhas dos Lavinhenses, umas atrás das outras, num espalhafato de nudez prolongado, uma cena demasiado pecaminosa mesmo para os seus olhos secos. E as jovens insistiam em caminhar na sua direção, pararam muito perto da boca, e um riso buçal, meio desdentado, desatou-lhe o nó da garganta. O pastor desatou a chorar diante das raparigas nuas — estranhamente, esta foi a sua primeira reação — depois tentou alcançá-las, em quase desespero, antes que fugissem dali como ovelhas tresmalhadas a ressumar desespero. Agitava-se a figura triste do pastor, com os cabelos desgrenhados e desconformes, as roupas manchadas de suor. Quando a terceira moça parou perto de si, apertou-a com vigor, virou-a para a direita e para a esquerda, sempre com movimentos exagerados e grotescos. Parecia querer verificar-lhe a veracidade, e meio esfarrapado mexeu-lhe no crânio, para cima e para baixo, com um sorriso alucinado, meio postiço, meio embriagado — e todas as mulheres jovens da aldeia lhe apareceram nuas, e ele uma a uma as sufocou, e todas sufocadas, todas elas nuas criaturas ridículas — mal deram dois passos na sua direção, ficaram mortas sem expelir um grito, transformadas em damas de roxo pelas mãos rudes do pastor.
E outra dama despida se agitou. Marília chegou à mesma sala de visitas, engrandecida pela embriaguez do pastor, transformada numa dama dourada.
- Ai que eu não posso mais! – exclamou o pastor. - Ai que eu fico doente se tiver de te matar, mulher! As outras estão ali todas mortas e esventradas. Está a Alzira, a Lisete, está a Dulce, a Margarida, a Noémia, que foi a primeira alma a repousar, como as outras, neste vasto dormitório, todas desfeitas de existência. E ainda a Esperança com os cabelos encaracolados, deitada por debaixo da Trindade. Estavam todas trôpegas, nuas, com olhos aguados de cadelas com o cio, todas elas subiram a colina, esta manhã, para me atormentar. E se isto tudo não fosse já suficientemente ridículo, também tu resolveste, assim, aqui chegar.

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