38 - MEDO
Tenho-lhe medo!
— Para quê mentir se é medo o que sinto. O hálito do animal a invadir-me as
narinas, a entranhar-se na minha alma surpreendida e mentirosa. Sucumbo a esta
vaidade, por necessidade de sonhar e de mentir. Agora desata aos urros e chega
mesmo a arrancar pedaços inteiros da parede imaculada. O gigantesco navio
galático pouco se importa com isso, segue imperturbável a sua rota, cautelosa
nave, e eu acordei a acreditar que a minha vida já não me pertence, passou a
fazer parte das histórias que me dediquei a inventar. Ouço, nesta semi-obscuridade,
mais gritos indecifráveis que me chegam do outro lado da nave. Não são feitos
de alegria, não são gritos de cólera, não são sequer intoleráveis, derretem-se os
berros sobre o chão morno do salão, sobre a cúpula iluminada de catedral
esvoaçante, sobre os móveis inexistentes, sobre os painéis que passam imagens
de coisas passadas, com horas de séculos passados. O urso-gente urra, fala
consigo mesmo, pratica monólogos tresloucados e furiosos, e os olhos da besta
chispam de um negro intenso e hiptónico. Ganho coragem, fixo o meu olhar ao seu
e concentro-me para não desmaiar. Napoleão cambaleia, dança uma coreografia que
relata o momento em que começou a sua espécie de tragédia. Estende os braços
poderosos, com eles desenha improvisadas ondas invisíveis, e as garras crescem,
afiadas como lâminas, crescem até ficarem mais curvas e disformes. Está
trôpego, cresceu em tamanho com as suas garras, e grita, e esbraceja, e avança
direito a mim…
Marília
reconhece-o. Apesar da loucura e da dimensão assustadora do amante, mais uma
vez corre para ele a sorrir e lhe estende as mãos. Guardou para sempre nos
ouvidos os ruídos invulgarmente belos que fizeram enquanto se amaram. O sangue
que lhe escorreu das costas, e que talvez nunca mais volte a escorrer, alterou
o peso da sua voz, e ela usa-a para lhe ordenar, nesta hora mais extrema e
delicada, que guarde as unhas nas mãos, que lhe reluza a tranquilidade e doçura
nas órbitas, que reinicie a mesma marcha de outrora no seu coração acelerado, e
que voltem a deitar-se como amantes, os dois, ao mesmo tempo, no mesmo sofá que
de vermelho se pintou na primeira noite eterna em que os dois aqui
ressuscitaram.
- Para
Napoleão, acalma-te! O meu irmão tem-te medo. Deixou até de conseguir mentir,
pois se é só medo o que sente. O teu hálito invade-lhe as narinas, entranha-se
na sua alma surpreendida e mentirosa de pequeno menino poeta.
As palavras
primaveris de Marília ecoaram na sala com ternura. Napoleão reage ainda com a
fealdade, uma fealdade que já escorre menos negrume e frenesim.
- Para
Napoleão, acalma-te! O meu irmão tem-te medo.
E só com isto
Marília acalmou o clamor intenso do animal em que se repetiam sempre os mesmos
urros pronunciados como se de um Lázaro se tratasse, um morto que afinal estava
vivo.
Marília
resolveu sair de dentro da terra para salvar estes dois seres de todas as cores,
e chegou depressa, abriu e atravessou a mais dourada das paredes do salão para
assim sair de dentro da terra. Venceu rapidamente todos os entontecimentos, a
floresta há muito tempo que ficou para trás no seu caminho. É aqui que agora
lhe corre o sangue nas veias e escorre o verde e os castanhos na pele e nos
cabelos, tons vibrantes que com ela atravessaram o inverno. Conseguiu
finalmente deixar de ficar confusa com os sonhos de Perpétuo, sonhos outrora
contidos, sonhos que carrega há séculos.
- Realizou-se,
enfim, o teu milagre, miúdo. Descobriste, finalmente, onde estavam escondidas
as árvores que me ajudaram a chegar ao céu.
Comentários
Enviar um comentário