37 - ERRO DE PROGRAMAÇÃO



Pequenos objetos luminosos, quase impercetíveis, chegam ao grande salão para limparem e promoverem a manutenção do lugar, para que todos os espaços da gigantesca nave possam continuar a existir brancos e imaculados. Os seres minúsculos seguem à risca programas simples com regras antigas, compostos por linguagens arcaicas muito metódicas. Os seus códigos são sustentados por estruturas sublimes que se encontram concentradas em linhas finíssimas de uma programação sem igual.
Os seres aparecem e desaparecem disfarçados de insetos com fisionomias bizarras, com várias lentes que veem na obscuridade. Começam a distinguir, deitado no chão, submerso em dúvidas, o corpo desnudado de Perpétuo. Descem das paredes e dos tetos até ele, reparam que o poeta não está ainda ali, neste momento é apenas uma figura ainda por criar. Esta é a imagem do corpo que ele terá quando for homem no futuro. Agora é apenas menino poeta, com braços finos e longos, compridos como os ramos de uma árvore de sonho, braços capazes de atingirem o céu, forjados por dois amantes desesperados que tentavam escapar apenas a mais uma noite que lhes escorria nas veias.
E o doirado ilumina o salão, doirado da mesma cor da teia pegajosa com que a aranha capturou as suas moscas. As mesmas que o menino salvou, e agora está preso neste chão da misteriosa nave afunilada que avança pelo céu das coisas eternas. Os sonhos que se teceram em Perpétuo, jamais o tinham colocado em caminhos tão longínquos. Este é um sonho louco feito à sua medida, como Marília lhe custumava dizer: — Tu sonhas acordado, miúdo, andas sempre a inventar histórias. Qualquer dia arranjas uma da qual não serás capaz de te desenvencilhar.
E bastou apenas um dia. De um dia para o outro, do alto dos seus telhados, entreabriu-se na sua cabeça um forte entontecimento. Ali mesmo lhe foi contado um imenso sonho-aventura, e entre Perpétuo, as árvore, o céu e a terra, passou apenas a existir uma espécie de compromisso com a loucura. As árvores não estranharam a novidade. O menino poeta reparou que elas passaram a ter apenas um tronco enquanto agitavam e esbracejavam os ramos de um lado para o outro, para darem conta da novidade. Deparou-se com histórias, sentimentos e palavras que nunca tinha antes encontrado — Tenho de contar estas novas aventuras ao Toninho Faneca, já não são só histórias de piratas, de galeras e tesouros por desvendar! Os meus olhos passaram a ser capazes de distinguir as coisas na obscuridade. Começo a vislumbrar mais certezas no meio deste caos. Vou descer depressa deste telhado para uma profundidade que sei agora me estar destinada.
Naquele telhado, naquele chão, naquele quarto, o menino deixou de ser apenas uma figura ainda por criar. Naquele telhado, naquele chão, naquele quarto, o menino passou a ser o homem do futuro.

A noite dos mochos de olhos vermelhos escorre doiradada pelas paredes da nave navio, e os pequenos seres quase microscópicos lançam-lhe um luar doirado que não para de o iluminar, tecem uma teia feita de luz à sua volta, construindo-lhe um corpo, prendendo-o no chão às coisas eternas. Todos os sonhos de Perpétuo são assim tecidos e criados, para que depois outros tantos se possam pôr a caminho. É uma coisa única o que ali se passa.
É uma coisa muito engraçada.
É apenas mais um sonho, um outro sonho feito de todos os sonhos.
É apenas mais um sonho que não chega a ser sonho.
O corpo encrespa-se enquanto cresce, devagarinho, envolvido naquela espécie de ligadura luminosa que o vão modificando.
As paredes do objeto voador abrem-se, e do outro lado aparece o grande urso Napoleão a roer as unhas imensas. A imobilidade causada pela hibernação causou-lhe desespero. Avança pelo salão, meio estonteado, a regressar à vida sacudida por esta espécie de tempestade de sentidos. O menino poeta deitado no chão parece um pequeno piriquito empalhado, uma mera mosca morta.
Agora só se ouvem gritos, os horríveis urros de Napoleão ecoam por toda a nave. O animal começa a esfregar as unhas contra as paredes outrora imaculadas enquanto liberta grunhidos. O grande muro do salão alarga-se, algumas paredes são despedaçadas enquanto outras são empurradas e calcadas pela fera embrutecida que se tinha quase esquecido de como era sentir-se vivo assim.
Diante de si queda-se Perpétuo, e tem medo do que vê.

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