36 - UM VERÃO DIFERENTE DOS DEMAIS


Julho a terminar, e o tempo despido daquele calor que faz entreabrir os corpos mais friorentos. Corre um vento fresco em cada tarde e as árvores esvoaçam com ternura. O ar é mais de um março morno e as peles andam menos pegajosas e moles e húmidas. E, se de um dia para o outro, se de um verão para o outro, o ar primaveril que este ano vestiu a estação mais quente, e que sabe tão bem, viesse para ficar? O sol, ao longe e bem alto, trespassa da mesma cor os montes, mas são muitas as manhãs que acordam vestidas com um traje de névoa bordado a oiro. As árvores agradecem, as mais pequenas ainda estão cobertas de muitas flores, para quê apressar a vinda de mais calor, quem o queria enganou-se, e teria sido tudo bem diferente se esta tez luzidia tivesse envolvido em ternura o verão passado.
Sentir-me-ia ainda mais alegre se uma chuva gelada de primavera atrasada se atrevesse a pintar o cenário sem hesitações. Acinzentar-se-iam as serras e as veredas, as pedras encharcadas transformar-se-iam em majestosos castelos negros que ascenderiam, depois, até ao coração das gigantescas nuvens esponjosas de onde a chuva cai. Ali se escutam outras vozes, e se descerram lápides de cortinas vaporosas de onde galgam as chuvadas caudalosas, frias e embrutecidas.
Sentir-me-ei bem mais alegre quando a chuva gelada começar a pintar o cenário sem hesitações. E quando a noite cair, a escuridão e o silêncio esplêndido cobrirão o céu com mais ouro, e serão interrompidos pela luz branca dos relâmpagos e o ribombar dos trovões.
E depois chegará de novo o silêncio, a noite dirá adeus à tempestade, e fios de água misturar-se-ão com ternura e assombro pelo que restar da madrugada húmida, alterando as formas das muralhas até verem chegar a luz pálida de uma lua por metade. Este é, definitivamente, um verão diferente dos demais. A raridade do fenómeno está associada à diferente localização do anticiclone dos Açores que este ano deitou tudo a perder e se afastou mais para oeste. Há gente em Lavinhos que até anda mais encolhida com este tempo, que nem se atreve a olhar para o céu — que já só rezam a santos e a santinhas sem saber, ao certo, que oração lhes ofertar — andam desorientadas, as almas dos Lavinhenses, pois se Deus Nosso Senhor meteu este verão no fundo de uma loja qualquer. Talvez lá mais para outubro se resolva a abrir a porta onde o escondeu…
O calor intenso de um verdadeiro verão é aquele que se junta aos ventos para atiçar fogos e depois os arrasta por montes e vales e florestas até que fiquem derretidas todas as paredes de xisto, jamais esta simulação de primavera.

Deitada na sua cama, Leocádia ainda se sente entorpecida pelos gritos que escutou vindos da casa do padre Albano. A aldeia tem de saber os pecados que ali se praticam, mas agora é-lhe difícil resistir às mãos e aos dedos que lhe forjam a mentira, bem como o ato abjeto que pratica em si própria, capaz de lhe arrepiar a pele e entumecer os mamilos pequenos e rugosos. A mulher coisa, sem existência, imagina-se a regressar àquele lugar onde os sons lhe provocaram esta mistura pecaminosa feita de nojo, inveja, e sedução. De que servirá à velha católica apostólica, romana, saber daquele pecado, se nunca passaram por si tais sentimentos de prazer, se nunca esteve viva assim, se só lhe apetece partir tudo aos pontapés, partir para bem longe dali, para lá do sol posto, para lá das serras e dos vales, para lá das nuvens e do céu, para esse lugar onde já só consegue chegar se sonhar acordada. Tenta manter os olhos cansados, fixos e muito abertos. Leocádia vê-se reduzida às extremidades muito finas dos dedos, que vai usando, mas sempre a pedir misericórdia ao Senhor. Tem fome, tem muita fome, mas é só assim que se resigna a dar alimento àquela sua doce forma de mentira. Ali deitada, toda enrodilhada de prazer e de temor, mas cheia de indecisões diante das imagens súbitas que lhe surgem do céu e do inferno. Aquilo cheira-lhe sempre a coisa proibida, aquilo que passou toda a vida a desejar e a temer. De olhos bem abertos, de pupilas muito dilatadas, embrenhou-se no sonho, até às tantas, até a pele cansada se encrespar, até nos restos de tantos outros sonhos de Leocádia, sonhos em que o inferno ficava cada vez maior, e ela desinteressada, pois se foi nele que bem cedo se resignou a não viver…  

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