35 - AS TEIAS DO TEMPO
A paciência das
velhas aldeãs é feroz, a paciência e a mentira — espreitam as melhores ocasiões
como felinas, espreitam e esperam dentro da única parte delas que permanece desperta,
e depois reclamam as heranças às quais não teriam qualquer direito. Impõem-se, ordenam,
seguem pelas ruas de Lavinhos, umas agarradas às outras, a armar invejas, com
paciência, e a fazer sofrer. Há muito tempo que cada uma delas só pensa em fazer
sofrer os outros, apertando as teias ao seu redor. Leocádia tece fios sedosos e
sufocantes que envolvem as vítimas, todos os dias, com a ajuda de Hortense. As
duas cravam-lhes agulhas afiadas com veneno, e depois aguardam que elas parem
de gritar. Os sonhos deixaram de comandar as suas vidas.
- O senhor
padre Albano, quem diria,… isto é uma vergonha, um pecado, Deus Nosso Senhor me
perdoe, mas o melhor era mesmo matá-la, … os olhos da Madalena sempre cravados
nos olhos do padre, a megera, em todas as missas, todas as vezes que se chegava
à frente para comungar.
E as velhas sempre a mastigar em seco, com as
línguas de fora iguais às víboras que copiam, depressa deixam de lado a
paciência, trazem o veneno em pó atado à cintura, e depois levaram-no à boca
para o misturarem com a saliva amargurada que cospem em todas as direções. Acabou-se
a paciência, e o sonho, há muito que morreu:
- Espera,
Hortense... quando a Celeste souber, … vai depressa contar-lhe o que acabámos
de escutar — pecado, pecadores, duas vidas desorientadas e desgovernadas, o
excesso pecaminoso da luxúria infame, filhos de uma grande puta, Louvado seja
Nosso Senhor.
O
tempo dizia-lhes que só viviam vidas fictícias ao lado da vida real de todos os
dias, a perder o melhor da existência, a viver só de aparências, a não viver, a
querer apenas dizer que se não viviam, não existiam. Deus não pertencia àquele
lugar, não podia estar presente, desaparecera, e com ele também a morte —
estavam os dois corpos abraçados no chão da casa de Albano, a honra de Madalena
ali espalhada, nua, sem regras, sem questões. Por uma vez escutou bem nítida a
voz do seu instinto, e obedeceu-lhe sem subterfúgios. Primeiro avançou, e logo
recuou, logo, e do seu sonho esplêndido, quase ridículo, saltou depois feroz em
direção ao corpo verdadeiro de Albano, e foi ali que encontrou a verdade, bem
diferente da falsidade de todos os dias, e a ela se resignou.
- Há seres em
Lavinhos que tanto lhes faz estarem vivos como mortos, Albano. Eu fiz o que
tinha a fazer, não me interprete mal, visionei o indescritível e derrubei este
muro que me pesava da vida anterior. Os nossos corpos reclamavam um pelo outro,
fomos-lhes fiéis…
Albano sente
cólicas, a boca a saber a mel. E sobre tudo isto, nada há a contar, somente um
sonho por traduzir, gestos meigos carregados de volúpia, intervalados com
beijos carinhosos, mímica e olhares ternos, o mistério da ressurreição ainda por
resolver. Por isso Albano ainda não se matou, não foi ainda capaz de derrubar esse
seu muro.
As velhas, mais
esquivas do que mochos, depressa ficaram a saber tudo o que ali se passou.
Opõe-se à vida, contrariam a vida, as velhas não se detêm, sobem com as marés
que as alimentam, sobem sempre, ao mesmo tempo que o tempo passa e as gasta e
perturba — Eu não os quero mais escutar! Já não os posso ver, nem escutar! Estou
atordoada, perturba-me o som daquelas vozes. A noite cerrada a colocar-nos frente
a frente com os nossos fantasmas. Nem eu nem tu, Hortense, lhes conseguiremos
escapar. Um dia destes encontrar-nos-emos com eles, com o sabor da morte na boca,
mas esse dia ainda está para chegar.
A existência de
Albano será trasladada para um outro século, este folhetim não será conhecido, e
as velhas não os poderão deter — aí começará a verdade, a vida deixará de ser
um simulacro e os seus fantasmas tornar-se-ão minúsculos e ridículos. Madalena gritará
bem alto, invadida por novos abismos de prazer, e só então descobrirá que tudo o
que já viveu, afinal ainda não lhe aconteceu.
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