22 - A GRUTA
A nave alienígena tomou
conta dos céus de Lavinhos e o tempo parou. Marília foi colocada num
descodificador de partículas, uma espécie de sarcófago envidraçado onde um
líquido altamente nutritivo e oxigenado lhe limpou as impurezas terrestres e a preparou
para a grande viagem. Um ecrã iluminado projetou instruções após instruções pelos
corredores iridescentes do grande funil voador. Marília estava nervosa, mas bem
cedo parou de se preocupar. Seria tão bom se ela pudesse sentir mais vezes esta
espécie de tranquilidade aquática que lhe permite vislumbrar o futuro.
*
Marília falou com a maior
naturalidade, como se o líquido onde estava mergulhada lhe permitisse alcançar esse
desígnio. As palavras saíam com um bonito timbre aquático, e ela presumiu que sabia
o que estava ali a fazer. Levantou cuidadosamente as pernas e encostou os joelhos
à parte de cima do vidro, tocou numas luzes amarelas e abriu-se um alçapão
cerâmico que estava escondido por debaixo dela. O líquido desapareceu do
interior da campânula arrastando o seu corpo para o chão. O piso morno era da
mesma cerâmica da porta. Marília estava nua mas não sentia frio nem calor.
Ergueu-se e avançou até ao grande ecrã panorâmico onde piscava uma luz alaranjada
que ela pressionou. Da mesma parede luminosa surgiu, quase de imediato, uma
estreita passarela de aço que se projetou bem acima da água verde que não
parava de fluir, formando um grande arco por sobre a piscina. Marília sentiu-se
convidada a cruzar a bonita ponte de metal, subiu até ao meio onde encontrou um
pequeno cartão transparente com um retrato seu. Apanhou-o do chão e
imediatamente a temperatura do ar subiu dez graus, o ambiente tornou-se
bastante húmido e a ponte cresceu cinco metros em altura.
As suas mãos, braços,
ombros, costas e pernas estavam todas arranhadas, parecia que um grande urso a
tinha marcado, mas com carinho, desenhando-lhe na pele uma vasta riqueza de detalhes.
Marília sabia o nome do seu animal, foi ela quem o batizou, ela que na verdade já
tinha sido um lagarto na época dos dinossauros, mas era agora uma criatura geneticamente
distinta da anterior. Há duzentos milhões de anos atrás, na época dos dinossauros,
teria sido considerada um fóssil vivo, mas depois de grande evolução molecular renasceu
mulher loba, e depois mulher urso, e agora continua a caminhar nua até à porta do
outro lado da passagem. Nunca teve medo de dinossauros, nem de lobos, nem de ursos,
só teve medo dos homens, teve medo de quase todos os homens que conheceu.
A porta abriu-se, era a saída
principal daquele salão imenso, e do outro lado estava um novo painel de vidro iluminado,
com cerca de três metros de altura por nove de largura. O ecrã mostrava a imagem
de Marília, sozinha, na enorme sala nova com piso de pedra aquecida. Napoleão, assim
se chamava o grande urso, estava ali sentado num sofá branco a observar a amante
neste cinema espacial, era uma enorme tela televisiva.
- Olá, Marília! – cumprimentou
ele, sem nunca tirar os olhos do ecrã. Ela correu descalça naquele imaculado chão morno feito
de mármore, ainda húmida de verde, arfando de cansaço e emoção. - O teu irmão ficou
lá em baixo com todo o medo do mundo agarrado ao corpo franzino quando te mandei
buscar. Ele provavelmente já sabia que partiríamos, embora tu preferisses que ele
não soubesse.
Napoleão indicou-lhe o sofá,
então ela subiu e sentou-se a seu lado enquanto na parede apareciam projetadas dezenas
de imagens suas. Muitas Marílias clonadas, despidas, entravam e saíam, repetidas
vezes, pela porta ainda aberta do salão. Parecia uma invasão de mulheres gémeas
a tomarem conta do quarto imaculadamente limpo. Napoleão vestiu-lhe um corpete de
seda, muito justo, com franjas caídas ao acaso. O sofá transfigurou-se numa cama
king size com um monte de almofadas e
travesseiros, e foi ali que os dois seres realmente se amaram.
A nave funil passou a ser
a gruta, o lugar secreto dos amantes improváveis. Marília fugia para ali sempre
que precisava de se confessar.
- Desculpa, Napoleão, desculpa-me
querido, mas hoje tinha de confessar-te uma coisa. Achei Lucas pastor um homem demasiado
perigoso. Ele sorriu-me, mas nunca é um sorriso bom enquanto dura. Eu sorri-lhe
de volta, e ele seguiu-me.
O urso não respondeu, estava
concentrado a desenhar-lhe novas linhas no corpo sedoso e perfumado, com ela bem
presa entre as patas, apertada contra si, peito no peito, e ele a espreitar-lhe
as costas onde riscava linhas sem parar. Ela é a sua amante, e morará ali sempre
que desejar, embora por vezes lhe fale desse pastor Lucas, um homem que perde as estribeiras sempre que
a observa. Um dia Napoleão parecia prestes a fazer alguma coisa contra ele, mas hesitou. Marília não
o quer assassino, seria como se o seu amante deixasse de ser diferente dos demais…
sabe melhor assim esta sensação de poder, e não seria a mesma coisa se ele matasse
Lucas com a mesma indiferença com que os humanos se matam.
Marília apertou-o enquanto
ele a riscou de alto a baixo, ficou muito agarradinha ao amante urso, a sentir aquela
dor transmutada em prazer.
- Eu não sei porque te conto
estas coisas, Napoleão, mas depois penso…e porque não? Amo-te demais para te esconder
os pensamentos, olho para ti, para essa tua altura de gigante, e o melhor que sei
fazer é não conseguir ficar nem longe nem perto demais de ti. Faria muita diferença
se morrêssemos agora mesmo, meu amor? Só quem nunca amou com forma de gente consegue
não imaginar este rio de águas infinitas que invariavelmente nos separa.
O trajeto das unhas afiadas
no corpo da menina levou longos minutos a percorrer. Caminho sinuoso manchado de
vermelho vivo, linhas curvas, paralelas, marcadas apaixonadamente na pele da amante
enquanto ela lhe mordeu o peito em silêncio, exceto por uma ou outra vez em que não conseguiu evitar abrir a boca para urrar.
Napoleão parou de a marcar, e foi quando ela lhe devolveu o olhar que ele fixou.
Virados um para o outro, com as palmas das mãos coladas, depois apoiadas as mãos
na ponta dos dedos, sorriram antes de se beijarem apaixonadamente, antes de se amarem
numa cama king size salpicada de sangue
fresco, como só dois ursos sabem fazer.
- És bonito demais, e sempre foste galante o suficiente para teres
despertado em mim este desejo de ser conquistada. Não amarei mais ninguém, Napoleão,
juro, mesmo sendo tu urso e eu uma simples mulher. Sabes beijar sem magoar, dizes
as coisas certas, acabas por dizer tantas coisas sem nunca falares, suamos e os
nossos suores misturam-se bem naquele momento em que ambos sabemos o que estamos
pensando, e eu espero que tu me digas que este nosso amor sobreviverá para sempre,
mesmo que as bactérias do passado
e do futuro interfiram nesta nossa estranha forma de existir.
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