21 - DIAS DE NÃO ANIVERSÁRIO
Eu não recordo os meus aniversários,
cortei as memórias dessas datas como bolos, mas
lembro-me bem de todos os dias com o Toninho, e principalmente aquele em que resolvemos
descer o rio remando até a Ilha dos Piratas. Feita a descoberta do mapa do tesouro
numa improvável noite de inverno, informei de imediato o meu amigo, e logo na manhã
desse dia munimo-nos de pás e seguimos viagem na barcaça do velho Semedo. O
bote tinha mais rugas do que ele, metia água e rangia sempre que os remos se
agitavam, mas tudo isso fazia parte da aventura. Aquele era o dia mais feliz
das nossas vidas de exploradores. O Toninho nem queria acreditar, estava
eufórico, e só descansou depois de arranjar as ferramentas necessárias à
expedição. Eu esqueci-me da bucha para a viagem, mas a fome não nos visitou,
tal era a excitação. Durante o caminho só pensávamos em chegar à ilha de Las
Lágrimas e escavar próximo da raiz de uma árvore em forma de coração. O mapa
não deixava margem para dúvidas, era aí que encontraríamos um baú cheio de
moedas de ouro e prata, para além de muitas pedras preciosas. O Faneca era muito
mais do que um irmão para mim, quando eu lhe contava as histórias que ia inventando
o seu sorriso iluminava-se e os olhos ganhavam um brilho singular.
- Toninho, temos de
arranjar forças para cavar bem fundo na terra, até sentirmos a pá bater no baú,
até escutarmos o maravilhoso barulho metálico que nos dirá, finalmente, que ali
que se esconde um tesouro de verdade. Foi uma sorte danada eu ter dado com este
mapa do tesouro na primeira vez que visitei a ilha de Las Lágrimas. Como é que alguém
podia imaginar que naquela velha casa abandonada estava escondido um mapa tão
importante.
Coisa boa era ser criança,
péssimo é ser adulto neste agora para onde a nave afunilada nos transportou.
Eu não recordo os meus aniversários,
cortei as memórias dessas datas como bolos, mas
lembro-me do muito tempo que ainda navegámos a descer o rio até avistarmos a costa
da ilha, até sairmos da pequena barcaça enfeitada de caravela quinhentista e
nos sentarmos num tronco muito liso que ali mesmo se encontrava. Parecia ter
sido arrancado pela raiz por uma terrível tempestade, depois atirado às águas
revoltosas do rio que o arrastou até ao arquipélago de Santa Cecília, que o
arrastou até à mais bela das suas ilhas, e depois encalhou. As águas da enchente
recuaram e lá nos acomodámos, um ao lado do outro, sentados a olhar o rio agora
tranquilo, agora feito quase piscina encolhida debaixo dos nossos pés pois
aquele verão estava a ser mais seco e quente que o normal. Lembro-me, contudo,
que aquele dia não foi assim, naquele dia o verão vestiu uma camisa primaveril para
nos ajudar a comemorar a grande descoberta. Sim, naquele dia de aventura perdemos
de vista o passado e o futuro, por alguns instantes o sonho era tudo aquilo que
ali nos acontecia. O Toninho tinha muito respeito por Cornelius Barbudo, um
homem que ficou famoso pela sua crueldade e por possuir uma mão esquerda feita
de ferro. Era com essa mão que gostava de abrir as cabeças aos inimigos e a
todos aqueles que se atravessassem no seu caminho. O pirata viveu uma vida
longa e era já octogenário quando regressou a Las Lágrimas para resgatar o tesouro.
A lenda diz que ele não foi capaz de o encontrar por sofrer de demência, e até
se esqueceu de como se diziam as palavras. Foi num raro momento de lucidez que ele
terá desenhado o mapa do tesouro, depois guardou-o num lugar misterioso da ilha
e bem depressa dele se voltou a esquecer.
Eu não recordo os meus aniversários,
cortei as memórias dessas datas como bolos, mas
lembro-me bem de como o Toninho Faneca não abriu a boca enquanto eu lhe contei
esta história. Depois de eu terminar, ficávamos parados tempos infindáveis sem trocar
uma palavra. Quando nos levantámos apenas conseguíamos ouvir os estômagos a roncar.
Prendemos bem o barco antes de começar a subir uma encosta íngreme que dava para
um bosque de faias. Andámos sem rumo por muito tempo, enquanto eu me tentava localizar
através da leitura do mapa. Foi então que alguém sussurrou os nossos nomes, alguém
tinha-nos seguido por entre as árvores e encontrou-nos sem dificuldade no meio da
floresta. Foi apenas uma questão de segundos até descobrirmos a silhueta de
Marília, que ainda mais depressa nos avisou:
- Não vos quero assustar,
nem nada, mas vocês têm de regressar imediatamente para casa. A ilha está infestada
de estranhas criaturas cor de metal, são seres que se assemelham a homens mas os
seus rostos não são caras de gente. Corram depressa, sigam rio acima o mais rápido
que conseguirem,… mas do que é que ainda estão à espera?
E foi assim, desta
maneira improvável, que Marília passou a controlar a situação. Eu e o Toninho
tivemos de lhe obedecer pois sentimos uma inusitada estridência no seu nervosismo.
Que seres estranhos seriam estes que Marília observou na ilha de Cornelius Barbudo?
Eu não recordo os meus aniversários,
cortei as memórias dessas datas como bolos, mas
lembro-me de ter escutado esses homens metálicos a correr atrás de nós enquanto
regressávamos ao rio. Aí chegados, empurrámos de imediato a barcaça rabugenta
do velho Semedo pela costa da ilha até alcançarmos a água onde mergulhámos os
remos uma vintena de vezes. Foi só então que vimos cinco criaturas de metal
paradas na praia a olhar para nós, e Marília sentada ao lado delas numa pedra muito
grande. O que é que a minha irmã estava ali a fazer? Fosse o que fosse,
tínhamos ficado com o dia todo estragado, e para piorar a situação, a frágil canoa
começou a encher-se de água. O Faneca estava silencioso, parecia possuído por uma
espécie de encantamento sem fim. Eu aproveitei para puxar conversa de uma maneira
nada subtil.
- Ajuda-me, Toninho! Rasga
a tua roupa e tapa estes buracos com os farrapos, olha, faz como eu senão vamos
ao fundo.
Depois de muito trabalho e
com bastante dificuldade, lá conseguimos vedar as maiores aberturas do casco e retirar
parte da água do navio. Voltámos a remar, e após a grande curva do rio, demos de
caras com o mar oceano, uma vastidão de azul cintilante de onde já mal se avistava
a ilha de que eu me lembrava. Las Lágrimas era apenas uma silhueta contornada pelo
sol. A nossa canoa não se afundou, Toninho apenas me fitava de um jeito quase tímido
com os seus olhos arregalados e todos os outros traços do rosto, nariz, orelhas
e boca, que eram grandes demais para caber em face tão pequena, como se tivessem
crescido adultos numa cara infantil. Eu fiquei sem saber o que dizer. Toninho esboçou
mais um sorriso antes de encolher os ombros. Ele não tinha embarcado pela mesma
recompensa do que eu, a sua recompensa era estar ali sentado e conseguir imaginar-se
marinheiro quinhentista, era ter diante dele o rio transformado em oceano, era poder
viver semanas inteiras num só dia, era conseguir abarcar mais uma história do meu
alfabeto, e poder ser quem mais quisesse dentro dela e fora de si.
Eu não recordo os meus aniversários,
cortei as memórias dessas datas como bolos, mas
lembro-me bem de como o Toninho Faneca não abria a boca sempre que eu lhe
contava histórias como esta.
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