20 - SECOU O LEITO DO MEU RIO



- Perdi tanto tempo à espera de te poder abraçar, Marília. Os teus beijos húmidos fazem tão bem à minha face escaldada, o pior virá depois… Hoje voltei a recordar tudo o que transpirei naquela noite. A aula de aprender a crescer não me converteu numa pessoa melhor, bem pelo contrário. Praguejo hoje bem mais do que outrora, tive de reler a nossa história para reaprender a chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. A minha loucura terá tido o seu início quando escutei a nossa mãe a rezar, muito alto, aos Santos e à Virgem Maria, do outro lado da porta do quarto. A mãe viu-me a pairar, suspenso no ar, entre a cama e o teto, e depois ficou o resto da noite ali sentada no chão com as mãos muito juntinhas ao nariz, igual a um livro feito de dedos finos. A interpretação que a mãe fez da sua vida nessa madrugada mudou-a para sempre.
- Já tomaste os remédios hoje? – reclama Marília, evitando perguntas diretas acerca do discurso do irmão. A resposta chegou num quase impercetível “Nam”, e ela cheia de vontade de ter um colapso nervoso, cair para o lado e apagar-se por um ano inteiro, mas lá se aguentou.
- O médico disse que tinhas de tomar dois destes comprimidos brancos depois das refeições até a caixa terminar, são três vezes ao dia durante três semanas, … estás a tomar atenção ao que eu te digo, mano? E tu sabes que quem decide a hora de almoço é o relógio, não és tu.
- Olha Marília, não tenho fome, provavelmente até deve ser algum efeito secundário dos medicamentos, depois não como, não comendo não há horário de refeições, é por isso que não os tomo, e estou cada vez mais descoordenado. Se não vieres ter comigo à hora de almoço, ou de jantar, ou à hora de qualquer outra refeição, o meu cérebro desliga-se, pois é cada vez mais este lugar esquisito onde nos encontramos de quando em vez.
O irmão transformou-se neste novo alguém que Marília já quase não conhece. Precisou de adaptar a vida e as rotinas, segue agora uma agenda muito apertada para o poder acompanhar nesta fase complicada da vida, ela que sempre foi a sua pessoa preferida...
- Sim, olhas para mim desse ângulo, e o que vês? Outros eus? As suas trombas são iguais à minha, mana, será que são parecidas com as minhas prisões?

Oh, meu Deus, Madalena tinha razão! Os detetores de pecados tinham funcionado, ergueram os muros altíssimos que agora vê à sua frente, e é neste lugar que gente demais a observa e aponta, e dois sátiros com cornos transformados em sirenes indicam que ali se encontra a pecadora, mas ninguém escolhe assim uma prisão fictícia onde se deixa de ser pessoa sedenta e passa a mero corpo vazio fuzilado por olhares.

- Sinto falta de quando éramos pequenos, mana, lembro-me do fascínio que sentíamos pelo bosque, e da extrema atração que ele exercia em ti. Naquela noite em que saíste de casa pela última vez, fui atrás de ti, subi ao telhado da casa da velha Etelvina, agachei-me e enfiei os dedos por debaixo de duas telhas que ali ergui. Então voltei a olhar para o bosque à tua procura, repeti no meu ouvido a memória recente do barulho dos teus passos que tentei     seguir. Foi esforço sem glória. Abriste o portão da floresta e seguiste para o teu lar onde ficaste sentada de pernas cruzadas numa cama de musgo e de vergas, deixando para mim somente o ar gelado da noite a bater-me nas costas. No meu quarto resolvi esventrar a parede de xisto e espalhei as roupas da cama por toda a parte. O relógio despertador tiquetaqueava segundo após segundo, o chão branco de cal foi onde esfreguei os pés antes de te seguir, cal que depois depositei nas duas telhas roubadas, telhas papéis, folhas onde pela primeira vez vi desenhado este exercício antigo que um mocho alienígena ali mesmo me tinha acabado de ensinar. A nossa mãe tinha dado comigo meio a voar, meio a cair, mas acabou por ser ela a esparramar-se pelo chão.
Marília escutou-o, como é seu hábito, sem interromper, mas desta vez teve a estranha sensação de que não seria boa ideia deixá-lo sozinho durante a noite.
- Meu querido, acho que hoje vou mesmo ter de me contentar com este sofá da sala. Está decidido! Agora vou lavar a louça e já volto para fazer a cama. É tarde, estou demasiado cansada para conduzir, ainda me matava no regresso se conduzisse com esta maldita dor de cabeça.
Marília é uma santa com coletes salva-vidas, é forte, mas hoje o irmão está demasiado irracional.
- Bom… que bom, e tu lembras-te quando éramos crianças, quando aproveitávamos os dias para andarmos sempre a correr de um lado para o outro pelas margens do grande rio. Tu vinhas atrás de mim aos guinchos para me aterrorizares, atiravas-me aranhas e lagartixas porque sabias que eu as odiava, e eu tinha medo de verdade, mas não tinha medo de verdade porque te tinha a ti. Naquela época, o verdadeiro terror apareceu de madrugada e eu não tive outra escolha senão passar a sentir-te. Tu só existes, Marília, por causa desse rio que de repente deixou de ser eterno para mim.

Foi mais ou menos assim:  Raúl deu com a mulher sentada no chão a rezar aos Santos. Ela confessou ali mesmo o que ele sempre suspeitou. O marido transformou-se de imediato num animal embrutecido e delirante. Madalena não o queria conhecer, mas invocou-o, Madalena virou-se novamente para ele, pediu-lhe que espreitasse o filho voador com os seus próprios olhos, por causa da sua maldade, e da dela, por causa principalmente do pecado dela que ele não podia conhecer. Queria saber de onde lhe tinham nascido as asas, queria saber se podia parar de confessar todos os seus pecados, queria apenas que o seu menino pudesse voltar a descer e adormecer.

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