19 - A PREDADORA
As ovelhas seguem umas atrás das outras numa espécie de fila indiana
provocatória, seguem os passos umas das outras, seguem o corpo da primeira e da
segunda e da terceira, e depois o rebanho abranda para seguir à risca as ordens
dos cães que seguem à risca as instruções do seu pastor, que é quem os comanda,
e Lucas segue à risca os mandamentos divinos do Senhor que lhe disse que hoje
seria um grande dia, exatamente igual aos anteriores, e tudo acontecerá de
maneira pacata, dia após dia após dia, nessa fila indiana provocatória de dias que
se sucedem, infinitos, uns atrás dos outros. Lucas segue o rebanho que avança pela
paisagem imaculada, quase indescritível, que o Senhor por ali arquitetou. A
terra está coberta de geada até às entranhas, é um imenso tapete branco
cristalizado a brilhar na noite escura que o bordou. A marcha dos animais
compõe uma bonita melodia no manto de cristal onde se espelham os seus passos
ordenados em longas linhas contíguas. O pastor conhece todos os animais do
rebanho, distingue-os pelo andar, pelo porte, pelas conversas que são capazes
de lhe escutar, distingue-lhes o cheiro, sabe quem são e como se comportam, por
vezes preferia não saber, por vezes preferia poder proporcionar a si mesmo um
dia diferente, preferia ficar a ralhar com a filha do Raúl, preferia ser uma
das ovelhas do rebanho e não mais o seu pastor, preferia não ter juízo
suficiente para preferir tantas outras coisas, preferia ter sido ele o tecelão
daquele manto musical imaculado, era só mesmo isto que ele às vezes preferia.
Marília atravessa-se, de quando em vez, no seu caminho. O rebanho sente-a, os
cães ladram ao cheirá-la, sabem que é ela quem anda por ali a rondar, transformada
em jovem loba matreira. Lucas treme de satisfação quando a predadora o visita, atiça-lhe
os bichos que correm danados no seu encalce, atiça-lhe o sangue e a adrenalina,
atiça-lhe a vida de pastor que é sempre a mesma espécie de fila indiana provocatória
de dias sempre iguais, atiça-lhe a vontade de lhe ferrar os dentes e as mãos e
a língua e o sexo, atiça-lhe os demónios todos que ele tem guardados dentro de
si, e depois corre desenfreado atrás de Marília, como daquela primeira vez em
que ela apareceu, e depois fugiu a correr. Ele perseguiu-a, e ela correu, ele
perseguiu-a, ela correu e correu e depois ficou à sua espera, a sorrir, num
recanto perdido da floresta. Lucas deu com ela abraçada ao maior urso que
jamais vira. Ficou parado a olhar para eles, a espumar da boca, a espumar um
veneno esverdeado pelos cantos da boca ao ver a rapariga ali tão perto, ali tão
longe. O urso negro tinha quase três metros de altura assim posto de pé nas
suas possantes patas traseiras. Nem precisou de fazer nada o bicho estátua, a
quem Marília acariciava o longo pelo lustroso enquanto sorria para Lucas
pastor. O homem bicho nunca antes tinha chorado aquela espécie de lágrimas raivosas,
eram alucinadas e bem menos lamuriosas que as tradicionais, eram semelhantes à espuma
venenosa e esverdeada que lhe saltava pelos cantos da boca em todas as direções.
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