10 - QUANTAS VIDAS MORRE UM ESCRITOR




O que será que queria mesmo o menino poeta? Ele hoje sabe como é difícil escrever a respeito de uma irmã como Marília, a quem interessava muito mais ser mulher abstrata do que uma mulher de outra espécie qualquer. O respeito que nutre por ela está profundamente ligado àquela sua louca e apaixonada forma de existir.
A melhor espécie de vida é a que é vivida com uma forma de emoção quase egoísta e que emociona. O menino poeta sofreu por não ter conseguido viver assim.
Um escritor morre mil vidas antes de viver, dizia o menino poeta enquanto perseguia Marília na ânsia de receber algumas migalhas de emoção. As mãos eram ainda demasiado pequenas e estavam frias para escrever. Corria no encalço de aventuras estimulantes, histórias sensacionais que, ao serem lembradas muito tempo depois, ainda o fizessem vibrar de emoção.
Marília amava a vida, a natureza, a continuação da linha do horizonte e o início das madrugadas. Marília quando amava enchia o peito de um amor ímpar e consubstanciado em tudo o que ali respirava. Comparava as suas vestes às cascas das árvores, os trajes que ela imaginava era para com eles se vestir e se esconder. E depois apareceram-lhe as estranhas criaturas, talvez enfeitiçadas pelo seu espírito, que a desejaram conhecer. Acharam-lhe parecenças, quem sabe, e todas estavam trajadas de metal como nunca ninguém vira. Depressa a vestiram com as mesmas roupas e a colocaram no círculo que formaram. Surgiu o novo corpo irreal da pessoa luminosa em que Marília se tornou, e depressa “os estrangeiros” a levaram pelo grande foco de luz.
O menino poeta ficou só, e grande foi a sua desilusão.
Desde o princípio daquele dia algo estranho, algo mesmo muito estranho o atormentou. Ele bem que decidiu variar constantemente os pensamentos para afastar as ideias absurdas que lhe vinham à cabeça e que lhe teciam aquelas bizarras imagens na alma. Os “estrangeiros” com os seus estranhíssimos trajes apareceram-lhe, de quando em vez, por curtíssimos instantes, à sua frente, impedindo-o de avançar.

Comentários