06 - A MARÍLIA FUGIU
Finjo que estou, faço de
conta para que ninguém me possa recusar a existência. O mocho velho continua a
pairar por ali, vai espreitando pelos cantos da casa, vê como ainda sou pequenito.
Parece que o animal gosta de me ver criança, talvez gostasse de ser um miúdo
igual a mim. Estou receoso, hesito sair da cama para fora. A velha ave encoraja-me
com os seus olhos gigantescos:
– Vem ver como são lindas
as paisagens noturnas se as pisares com cautela! Vem, não te deixes dominar por
tais pensamentos, não faças essa cara, salta daí e observa os recantos
do teto, as frinchas no soalho, as diferentes cores da madeira dessa cama velha
onde estás deitado, a fazer de conta que dormes de olhos fechados. Anda, tira
esse corpo daí!
Não ouso responder. Permaneço
enrolado debaixo dos cobertores, virado para a janela, insistindo na mentira do
descanso. Ouço o respirar do animal sussurrante que parece ter chegado do mundo
dos mortos. O pássaro velho é muito rápido e multiplica-se em ameaças:
- Não te escondas, não
vale a pena tentares fugir. Vou contar-te um segredo. Os teus pais também já
foram filhos que eu outrora visitei. Escondiam-se dentro de grandes baús onde
se fechavam para tentar sacudir o medo, aos gritos e aos pontapés, ou então revistavam
no sótão espaços circunscritos onde se enfiavam, e ficavam por lá até que alguém
os fosse resgatar.
O que será que pretende este
pássaro ao observar-nos assim desta maneira, a pestanejar, sem nunca parar de nos
mirar com este olhar intenso e inquietante?
Afasto os lençóis e as mantas
pesadas que me oprimem, primeiro uso as mãos, depois empurro com as pernas e os
braços. Fico livre e corro para fora do quarto que deixei de conhecer. Tudo o
que eu quero é ficar bem longe daqueles olhos misteriosos e intimidantes. Um mocho
capaz de comunicar os pensamentos é coisa ruim que não devia existir.
*
Marília fugiu de casa de noite,
sem ser por medo.
Deixou-os, desapareceu para
longe de tudo.
Na aldeia diziam que ela se
embrenhava na floresta para apagar outras imagens e outras dores, e só parava de
correr quando as pernas já não lhe obedeciam e os olhares penetrantes dos mochos
alienígenas a deixavam de importunar. Corria ao acaso, sem rumo nem destino pois
para ela os trilhos de caminhos seguros não faziam qualquer sentido.
Marília nasceu com uma vontade
irresistível de ser eterna e forte como um rio. Dar o braço a torcer era como quem
a matava. A realidade inteira enervava-a. Marília fugia por não querer lidar
com ela, e jamais acatava as suas decisões. Ela só era feliz nesses lugares onde
se embrenhava, no meio dos bosques, para procurar finas linhas circulares, quase
impercetíveis, que as árvores ali teciam de maneira inexplicável. Os locais que
procurava escondiam esses círculos imaginários que se retorciam e giravam sem parar,
e onde o tempo se movia na direção oposta ao vento que se fazia sentir. Nesses espaços
tudo acontecia com maior nitidez, apesar de as cores serem menos vibrantes e os
sons menos audíveis.
O menino poeta não entendia
nada do que se estava a passar.
Sentia medo, e culpava o mocho
alienígena por lhe ter causado tamanho desalinho. A irmã fugiu de casa muito
cedo. Àquela hora da madrugada não era hábito haver gente nas ruas da aldeia, mas
o pastor lá estava, no meio da praça, a pertencer à mesma cena dos irmãos.
- HÉ…. moça de uma figa!…
mas por que raio andas tu aqui a correr de madrugada, inda m´assustas o gado, miúda…
Mas afinal… para onde vais tu a fugir assim, rapariga?
Marília foi brusca, nem se
atreveu a responder, nem parecia ela a proceder assim. Não trazia a cabeça no lugar,
já não sabia onde estava, apenas sabia que não queria estar ali naquele instante.
- Raios partam a fedelha!
Mas eu conheço-te bem! – exclamou o pastor, bastante alterado - Sim, tu não escapas.
Logo mais à tardinha vou ter uma conversa com o teu pai, depois vais ver como elas
te mordem….
O menino poeta só saiu de
casa depois do ralhete do pastor. O rapaz esperou antes de sair, não fosse o homem
confirmar a sua presença por ali.
Marília tinha desaparecido
sem deixar rasto, e ainda tardava bastante para amanhecer.
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