05 - OBITUÁRIO
Há dias em que não nos apetece
sentir.
Hoje é um desses dias.
Estar quieto não resolve,
a cabeça sempre a aventurar-se por lugares inóspitos. É impossível desligar as
ligações que lhe permitem galgar as fronteiras e os tempos e as regras e todas
as incongruências, e eis-nos de novo perante lugares e situações mais reais do
que simbólicas, onde tudo é intenso e sensorial, onde a ficção extraordinária
se mascara de realidade, transformando os dias banais nos outros em que não nos
apetece sentir.
Hoje é um desses dias.
Falamos sozinhos sem abrir a boca, o sol a doirar a manhã, um azul celestial a embelezar
o céu, e à cabeça regressam as imagens do sonho desta madrugada, que já estavam
apagadas mas que se acenderam com a habitual leitura do jornal do dia. Ali
estava a fotografia e a notícia trágica da morte de um amigo, pai de três
filhos menores, e o dia deixou de fazer sentido. Para onde voam os mochos de
olhos negros, para onde seguem viagem, quero ser um deles e resgatar as
lembranças desses tempos em que ele e eu apenas conversávamos acerca de coisas
banais, nada mais do que isso… conversas acerca de coisas triviais.
Hoje respiro, o ar que me
entra no peito permite-me viver.
Esqueci-me daquele dia distante
em que raspava os dedos pequenos na parede do quarto com receio de morrer, mas é
mentira pois eu nunca me esqueci, somente não queria morrer. Ninguém assim tão jovem
deveria sujeitar o pensamento a tal desajustamento da existência. Nessas idades
somos perpétuos e invencíveis, tão fortes como as embarcações feitas de pau e de
folhas que os ventos sopram através da chuva e de trovões. A minha tripulação e
a do capitão Toninho Faneca foram, de todas, as mais valentes. O fiel
companheiro de aventura era franzino, mas só de corpo e de cara, a sua alma era
mais forte que um furacão. Ali, nesse passado, éramos imortais, eu e o Toninho,
mas o maldito mocho alienígena depressa resolveu passar-me a terrível informação.
- Um dia, mais cedo ou
mais tarde, irás desaparecer desta Terra onde vives. Um dia, mais cedo ou mais
tarde, deixarás de ser e de existir. Os teus olhos deixarão de ver, deixarás de
escutar, deixarás de respirar…, em suma, a tua pessoa inteira deixará de
existir!
Acordei encharcado em
suor. Ainda hoje recordo essa hora maldita em que o pássaro me acordou com a
sua estúpida informação… Passavam alguns minutos das duas horas da madrugada. O
relógio despertador da mesinha de cabeceira marcava as horas e os minutos, e
tiquetaqueava os segundos com a precisão de um afinado metrónomo. Os ponteiros
marcharam toda a noite ao ritmo imposto, e como eram irritantes e barulhentos.
Os meus dedos aproveitaram a sinfonia para se entreterem a esboroar a parede
branca do quarto onde continuei à procura do tesouro escondido de Cornelius
Barbudo. O corsário cobarde vendeu a alma ao demónio para atravessar os tempos,
ou talvez se tenha aliado ao pássaro estúpido para regressar do passado e assim
conseguir roubar-nos no presente e no futuro.
Roubaram-me a imortalidade
cedo demais, e a esperança de que os amigos e a família pudessem ser eternos
como eu julgava, e hoje a maldita notícia do jornal berrou-me esta evidência
com a foto do amigo que ali não devia aparecer.
O pó da caliça esboroada
da parede do quarto caía no chão de madeira ao compasso do relógio despertador,
caía com a mesma pressa com que a vida nos é roubada, cada dia mais um pouco,
pouco a pouco, sempre um pouco, a cada novo dia.
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